Em 22 de abril de 1965, cientistas, curiosos e poderosos da época ficaram alvoroçados com uma cena: em uma bancada, juízes, testemunhas e advogados iriam discutir os argumentos contra e a favor do físico americano J. Robert Oppenheimer. A imagem é familiar para quem assistiu ao novo filme Oppenheimer. Mas a data em questão não é a do julgamento real, que ocorreu em 1954, nem a do longa-metragem de Christopher Nolan, que estreou em 2023.
A cidade alvoroçada era São Paulo, e a cena era a reprodução do julgamento de Oppenheimer no Teatro da Aliança Francesa, na peça O Caso Oppenheimer.
Antes de chegar a São Paulo, o texto fez barulho na Alemanha. Em janeiro de 1965, uma polêmica tomou conta dos palcos europeus. O diretor Erwin Piscator (1893-1966) estreou meses antes em Berlim a peça O Caso Oppenheimer, escrita por Heinar Kipphardt (1922-1982), que narrava com recursos livres o julgamento do físico americano J. Robert Oppenheimer (1904-1967), creditado como o “pai da bomba atômica”.
O personagem era interpretado pelo ator Dieter Borsche (1909-1982), e Oppenheimer recusou-se a se reconhecer como o protagonista. Além de enviar uma carta de protesto a Kipphardt, ameaçou processar os produtores. “Lendo seu texto em alemão, fico mais uma vez impressionado com a quantidade de frases nas quais você inventa coisas que não só não aconteceram como não poderiam acontecer”, escreveu Oppenheimer.
Logo ali, em Paris, o ator e encenador francês Jean Vilar (1912-1971) ficou apreensivo com a reação do físico e reformulou em dois meses toda a dramaturgia que já ensaiava para estrear em dezembro de 1964. Vilar escreveu uma nova peça, O Dossiê Oppenheimer, baseada nas minutas da Comissão de Segurança de Energia Atômica, publicadas pelo departamento de Estado dos Estados Unidos. Oppenheimer aprovou o projeto sem ressalvas. Piscator e Kipphardt acusaram Vilar de traição ao engajamento do teatro, mas o francês não deu ouvidos.
O sucesso de bilheteria do filme Oppenheimer, do cineasta inglês Christopher Nolan, desvenda a complexa biografia do físico (vivido nas telas por Cillian Murphy). Baseado no livro Oppenheimer: O Triunfo e a Tragédia do Prometeu Americano, escrito por Kai Bird e Martin J. Sherwin, o longa retrata os esforços do pesquisador que liderou os estudos para desenvolver uma arma nuclear para os Estados Unidos na II Guerra Mundial. Oppenheimer, no entanto, depois dos lançamentos das bombas sobre Hiroshima e Nagazaki, se arrependeu e aderiu a campanhas contra o uso de armas nucleares. Foi o suficiente para ser boicotado pelo governo americano e ter a reputação destruída.
Chegada a São Paulo
O interesse em torno de tão rico personagem chegou ao Brasil poucos meses depois da celeuma europeia. Sob a direção do francês Jean-Luc Descaves, radicado em São Paulo, o espetáculo O Caso Oppenheimer, aquele escrito por Kipphardt, estreou no Teatro Aliança Francesa em 22 de abril de 1965.
Próxima à encenação de Piscator, a montagem trazia a dramatização do inquérito administrativo a que o físico foi submetido em 1954 e cujo veredicto o afastou de trabalhos relacionados a segredos militares e de segurança nacional. A cenografia colocava sobre o palco uma bancada para os três juízes, uma mesa central para as testemunhas e outras duas laterais, uma à esquerda e outra à direita, por onde se espalhavam os personagens do julgamento. O texto apresentava questionamentos, como o direito, por parte da ciência, de construir uma arma de guerra tão eficiente, capaz de colocar em risco a humanidade.
À frente do elenco de treze atores, Jairo Arco e Flexa (1937-2018) interpretou Oppenheimer, enquanto Paulo Villaça (1933-1992) e Rubens de Falco (1931-2008) representaram os advogados de acusação e Luiz Serra respondeu pelo doutor Lloyd Garrison, um dos responsáveis pela defesa do réu. O crítico Décio de Almeida Prado (1917-2000) publicou suas primeiras impressões em O Estado de S. Paulo de 24 de abril. “Jairo Arco e Flexa é um excelente Oppenheimer, renovando-se consideravelmente como ator, sendo de destacar também as interpretações de Homero Cosac, Líbero Rípoli Filho e Ferreira Leite”, escreveu.
Formado pela Escola de Arte Dramática (EAD) no ano anterior, Luiz Serra, hoje com 86 anos, fez sua estreia profissional neste trabalho. Aos 30 anos, o artista descoloriu o cabelo e a barba para dar credibilidade ao doutor Garrison, que, segundo as rubricas do texto, se aproximava dos 70. “Aprendi a escrever com a mão esquerda porque sentava do lado esquerdo da cena e não podia ficar de costas no palco”, recorda Serra, que assistiu e gostou muito do filme em cartaz nos cinemas. “Matei a saudade dessa ótima história.”
Em 1965, O Caso Oppenheimer trazia um assunto diferente para cena do país que, um ano antes, sofrera um golpe militar. O predomínio era de peças políticas e sociais, como Arena Conta Zumbi, apresentada no Teatro de Arena. Quem esteve na plateia do Aliança Francesa foi o ator e jornalista Oswaldo Mendes, então com 19 anos, vindo de Marília (SP) para estudar na Escola de Arte Dramática. “Tenho uma imagem quase fotográfica na minha memória dos atores se movimentando pelo palco ao redor daquelas mesas”, recorda.
O interesse pelo tema permaneceu no radar de Mendes que, entre 2016 e 2017, escreveu a peça O Julgamento de Oppenheimer, conhecida em uma leitura dramática na Casa do Saber, em 2018. Apoiado em pesquisas sobre as informações obtidas do caso nas décadas seguintes, ele centrou a trama nas divergências entre Oppenheimer e físico americano Edward Teller (1908-2003), considerado o “pai da bomba de hidrogênio”. “A questão nuclear e da ciência está cada vez mais no dia a dia das pessoas, mas devemos sempre ficar de olho quando isso cai nas mãos dos negocistas e militares e prevalece o interesse do dinheiro”, conclui Mendes.
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