CHICAGO — Trinta anos atrás, quando Tommy, o álbum conceitual do Who de 1969, foi transformado numa ópera rock para a Broadway, o espetáculo foi aclamado como um triunfo da forma: uma produção que finalmente conseguiu casar autenticamente teatro e rock ‘n’ roll.
Alimentada pela exploração espiritual de Pete Townshend, guitarrista e compositor do Who, então com 23 anos, a produção original de Tommy atraiu multidões de baby boomers cheios de nostalgia adolescente pela história de um menino que descobre uma aptidão sobre-humana para o pinball, apesar de não poder ver, ouvir nem falar.
O espetáculo da Broadway arrecadou um número recorde de vendas de ingressos no dia seguinte à noite de estreia, teve quase novecentas apresentações e ganhou cinco prêmios Tony, incluindo um para seu diretor, Des McAnuff.
Com suas representações de rebelião contra a autoridade e analogias com a iluminação espiritual, o espetáculo estava firmemente enraizado na cultura jovem da década de 1960. Então, por que McAnuff, para quem Tommy foi um sucesso que definiu a carreira, correria o risco de reimaginar a obra para o público de hoje?
“Às vezes, você simplesmente não consegue tirar as coisas do seu sistema”, disse McAnuff em entrevista logo após sua nova produção de The Who’s Tommy estrear no mês passado no Goodman Theatre, em Chicago. “Senti que era hora de trazer o espetáculo para o contemporâneo”.
Ao ressuscitar Tommy, McAnuff e Townshend, que escreveram o espetáculo juntos, procuraram provar que a obra não era simplesmente de uma época, mas carregava a promessa da atemporalidade.
Em 2023, McAnuff argumenta, a transformação de Tommy de colegial catatônico em uma espécie de líder de culto carismático ressoa ainda mais forte quando se considera a cultura moderna de adoração a celebridades. E a exploração do trauma – como transtorno de estresse pós-traumático, abuso sexual e bullying – é algo de que o público agora tem uma compreensão muito mais profunda.
A reimaginação de Tommy não é tanto na história, mas no estilo, com McAnuff optando pela austeridade futurista em vez da nostalgia dos anos 1960. Tommy exibe sua habilidade não numa máquina de pinball kitsch, mas numa peça de cenário (desenhada por David Korins) na qual o contorno de uma máquina é representado por painéis de luz. O culto à personalidade que envolve Tommy parece mais sinistro do que na produção original.
A produção, que vai até 6 de agosto, recebeu ótimas críticas em Chicago, com o crítico Chris Jones, do Chicago Tribune, dizendo que ela está “pronta para estourar”. O teatro Goodman afirma que o espetáculo está prestes a ser sua produção de maior bilheteria de todos os tempos, uma benção depois do período de grande ansiedade em torno do retorno pós-pandemia. O produtor comercial, Stephen Gabriel, disse que várias opções para o futuro da produção estão sendo avaliadas, até mesmo uma temporada na Broadway.
Reinvenção de um clássico
A história no centro da produção é muito parecida com a que o Who contou quando tocou seu novo álbum em Woodstock, no ano de 1969.
Aos 4 anos de idade, Tommy vê seu pai – um capitão do exército britânico dado como morto em combate – aparecer na casa da família e matar o novo amante da mãe durante a briga que se segue. Tommy então perde os sentidos, tornando-se vítima de abuso sexual por seu tio, de bullying implacável por seu primo e de exploração médica por um exército de médicos invasivos. Depois que o mundo descobre seu impressionante talento para o pinball, ele vira uma espécie de messias, com um bando de seguidores devotos.
Se Tommy vai virar um fenômeno nacional mais uma vez, e não apenas uma homenagem nostálgica, depende, pelo menos em parte, de sua capacidade de capturar um novo público.
McAnuff vê Ali Louis Bourzgui, o protagonista de 23 anos, como a “porta de entrada para a Geração Z”. Embora recém-formado e quase desconhecido, ele é visto pelo diretor como uma estrela que será atraente para uma nova geração de possíveis fãs de Tommy.
Para Bourzgui, a ascensão meteórica de Tommy tem paralelos com o frenesi de certos influenciadores de redes sociais, artistas ou gurus da tecnologia.
“Ele é impulsionado por seus seguidores”, disse Bourzgui. “E continua se alimentando disso, fica mais guloso de poder, até perceber que eles o estão seguindo porque querem se alimentar de seu trauma”.
Bourzgui nasceu trinta anos depois do lançamento do álbum Tommy, mas tem memória de sua primeira audição – em vinil, na verdade – no apartamento de um amigo no primeiro ano de faculdade. Ele se lembra de ter se sentido tocado pela música e talvez um pouco confuso com o enredo. (McAnuff gosta de chamar a história de “fábula”, apontando para a suspensão de descrença necessária para aceitar o arco de Tommy de criança silenciosa a mago do pinball e líder de culto).
Em preparação para o papel, Bourzgui se debruçou sobre os vídeos do Who no YouTube, maravilhado com o magnetismo da banda. Com medo de cair na mímica, ele não assistiu aos vídeos da produção anterior.
“Nosso negócio não é apresentar peças de museu”, disse Roche Schulfer, diretor executivo do Goodman, que foi abordado sobre a encenação de Tommy antes que a pandemia virasse o mundo do teatro de cabeça para baixo.
Atualização preservou elementos originais
Schulfer foi persuadido pelas ideias de McAnuff e Townshend para uma atualização, bem como pela consideração de como certos temas e linguagens poderiam ser traduzidos para o palco de hoje.
A questão é aquela que os criadores de teatro de todo o país estão enfrentando: as obras revividas devem ser alteradas para se alinhar com as sensibilidades e visões de mundo do público atual?
Em Tommy, a resposta de McAnuff e Townshend foi, em grande parte, não.
Por exemplo, o verso “cego, surdo e burro” é central para alguns dos sucessos do álbum, incluindo o mais famoso: Pinball Wizard. Quando Townshend escreveu Tommy na década de 1960, a palavra “burro” era comumente usada para se referir a alguém que não entendia as coisas, mas agora é considerada um termo ofensivo e arcaico. McAnuff disse que ele e Townshend não consideraram seriamente mudar essa linguagem, vendo-a como fundamental para canções como Amazing Journey.
“Acho que ‘deficiência sensorial’ não funcionaria muito bem”, disse McAnuff. “Acho que é uma música que tem um certo pedigree e dignidade”.
Ao longo dos anos, os revivals – entre eles um de McAnuff uma década atrás, em Ontário, Canadá – deram aos roteiristas a oportunidade de reexaminar como o programa lida com questões delicadas. Naquela época, Townshend reconheceu numa entrevista que a ópera rock não permite explicações ou discussões sobre questões sérias, como abuso sexual, mas que o público pode considerar esses tópicos no contexto moderno.
“Temos que viver com a versão da ópera rock que fizemos vinte anos atrás”, disse Townshend na época. “Também temos que conviver com o fato de que Tommy começou como uma ópera rock em 1968, 1969. Mas os tempos mudaram. As atitudes mudaram”.
Sem ser muito pesado em nenhuma mensagem moralista, McAnuff espera que o público veja qual foi a intenção do trabalho desde o início.
“No final das contas, retratamos o que acontece com ele não para desculpar, mas para condenar”, disse McAnuff. “E acho que esse é o ponto de vista de toda a peça”.
Este artigo foi originalmente publicado no New York Times.
/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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