Quando ouviu da reportagem do Estado que o Brasil já possui uma montagem de A Cor Púrpura, o Musical, a atriz Whoopi Goldberg emitiu o som (facilmente reconhecível em qualquer lugar) daquele sorriso mágico que se tornou sua marca registrada desde que estreou no cinema, justamente em A Cor Púrpura (1985). “Que ótima notícia! Essa montagem é maravilhosa porque é forte e trata de assuntos que, por incrível que pareça, são ainda mais atuais como abandono, preconceito, violência contra a mulher negra”, disse ela, que estava em Verona, na Itália onde foi mestre de cerimônia. “Vocês, brasileiros, têm tradição na música, portanto, tenho certeza de que essa montagem conta com vozes potentes, capazes de honrar o canto poderoso que marca esse espetáculo e que eu nunca tinha visto antes”, continuou, depois de ter participado de uma entrevista coletiva com a imprensa local.
A certeza disso poderá ser confirmada pelo público paulista nesta sexta-feira, 6, quando A Cor Púrpura, o Musical estreia no Theatro Net-SP, depois de uma temporada de sucesso no Rio. Com direção de Tadeu Aguiar e produção de Eduardo Bakr, a montagem assumiu todo o tipo de ousadia estética que poucas vezes foi vista em produções nacionais. “É uma história que toca em várias feridas: machismo tóxico, escravidão, feminicídio”, conta Aguiar. “Quando assisti na Broadway, em 2016, fiquei chocado, não conseguia me levantar da cadeira. E, apesar do grande desejo de montar no Brasil, não acreditava que algum investidor teria coragem de aplicar seu dinheiro nessa trama.”
Seu ceticismo, porém, não durou muito tempo - na verdade, até seu projeto receber um ok da Bradesco Seguros. “Confesso que fiquei surpreso, mas percebi que já é o momento de tratarmos de assuntos delicados, mas urgentes.” É justamente do que se trata A Cor Púrpura, romance que a americana Alice Walker lançou em 1982 e que a transformou na primeira escritora negra a ganhar um dos mais importantes prêmios americanos, o Pulitzer.
Situada na Geórgia, na primeira metade do século 20, a trama acompanha a trajetória de Celie, menina negra marcada por dissabores, desde ser abusada pelo pai aos 14 anos até ser obrigada a se casar com um homem que a transforma em uma escrava, além de separá-la de sua querida irmã caçula, Netti. Celie só consegue descobrir o caminho da liberdade ao conhecer Sofia e Shug, duas mulheres que conseguiram se impor em uma sociedade machista.
“A história é universal: fala do ser humano, em especial das mulheres. É imediata a identificação com o momento do País, onde há tantas histórias de opressão às mulheres. A Cor Púrpura é um grande grito de liberdade”, explica Tadeu Aguiar.
‘A Cor Púrpura, o Musical’ oferece uma jornada de ritmos para contar 40 anos de história da mulher que ri quando deve chorar
Ao preparar a montagem nacional de A Cor Púrpura, o Musical, o diretor e produtor Tadeu Aguiar decidiu tomar caminhos novos em relação ao original. O cenário, por exemplo: se, na Broadway, a base eram 17 cadeiras, aqui ele preferiu algo mais preciso, embora com cunho artístico – a frente de um casarão típico do sul dos Estados Unidos do início do século passado é a estrutura básica e, ao seu lado, surgem escadas que têm diferentes funções.
“Eu preferi desconstruir o cenário, pois a casa parece que não foi ainda totalmente construída, sem telhado. É uma estrutura móvel, que tem de ser movimentada pelos atores. Essa solução ganha mais significado quando se sabe que aqueles personagens são ainda escravizados, portanto, têm de fazer força”, atesta Aguiar.
A estrutura da casa foi inspirada no tradicional porch, aquela varanda onde se reúnem famílias americanas. “Para a criação do cenário, foi fundamental a leitura do livro de Alice Walker, mergulhando fundo no estudo do texto, pensando em como poderíamos representar essa história que se passa em outro país, mas que, ao mesmo tempo, representa tanto da nossa história e da força dessas mulheres negras que construíram o Brasil”, descreve a cenógrafa Natália Lana.
Assim, entre vários espaços, circula o elenco de 17 atores, majoritariamente feminino. “Esse é um fato importante nos dias de hoje, especialmente em tempo de medo e raiva: as mulheres da história sofrem, e muito, mas exalam amor”, observa Letícia Soares, que vive a protagonista Celie. “A autora da história, Alice Walker, criou personagens sofridas mas guerreiras, que se ajudam até sem pensar.”
Letícia busca um caminho distinto do percorrido por Whoopi Goldberg, que viveu Celie no cinema. Enquanto a americana decidiu se afastar da jovem que sofre muito até encontrar a redenção, a atriz brasileira preferiu conhecê-la mais profundamente. “Nunca tive tamanha responsabilidade, pois se trata de uma personagem muito complexa. Em cena, preciso cantar e atuar com profundidade e emoção.”
Por conta disso, continua Letícia, ela deixa o preciosismo de lado e, em certas canções, graças ao alto grau emotivo, ela deixa escapar alguma nota ou mesmo emite fora do tom. “No começo, ficava incomodada, mas, depois, percebi que só seria autêntica se cometesse esses deslizes”, explica. “E Celie é uma mulher encantadora, pois não fala de dor, mesmo quando sofre. Seu olhar sempre é de esperança.”
As canções são determinantes para a passagem do tempo em A Cor Púrpura: os 40 anos de história são testemunhados por blues, spirituals, ragtime, work songs, entre outros, todas executadas ao vivo por uma orquestra de oito músicos. São canções que também exigem uma extrema habilidade vocal dos atores. “Nunca tive tanta nota grave, como agora vivendo Celie”, conta Letícia.
Segundo Aguiar, a transposição para a língua portuguesa exigiu uma malabarismo vocabular do jornalista Artur Xexéo. “Ele encontrou soluções mágicas, pois, em determinados momentos, a simples tradução resultava em uma frase que não cabia na melodia.”
“Às vezes, um verso original termina com uma vogal aberta e, para aproximar a versão de uma tradução literal, você termina com uma vogal fechada. Então, o melhor é se afastar da tradução literal e se aproximar do efeito sonoro”, conta Xexéo, que também foi cuidadoso ao trazer para o português um musical baseado em uma história passada na primeira metade do século 20, na zona rural do Sul dos Estados Unidos, com personagens típicos dessa região. “Mantive até alguns nomes que, na tradução do romance, ganharam versões em português. Mister, por exemplo, continuou sendo Mister, embora no romance tenha se transformado em Sinhô. Mas, apesar de ser um musical de época, fala muito de questões atuais, como a participação da mulher na sociedade, o papel da mulher numa relação amorosa, o machismo, o racismo... Não foi preciso adaptação alguma para o musical interessar à plateia brasileira. Ele, naturalmente, fala a qualquer plateia do mundo de hoje.”
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