Candido Portinari e Tomie Ohtake inspiram espetáculos de dança

Transmitidas online, coreografias destacam a obra e a trajetória dos artistas plásticos brasileiros

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Há uma série de coincidências entre dois espetáculos de dança inéditos que o público poderá assistir a partir desta quinta-feira, 28. Além de estrearem no mesmo dia, são produções que se inspiram na obra de artistas plásticos brasileiros e que precisaram passar por adaptações em função da pandemia, optando pelo formato das transmissões online.

Não é de hoje que a Cia. Druw debruça-se sobre a obra de grandes artistas da história. Kandinsky, Tarsila do Amaral, Van Gogh e Salvador Dalí estão entre os nomes que inspiraram encenações anteriores do grupo criado em 1996 pela coreógrafa Miriam Druwe. Agora, é um dos principais nomes do modernismo brasileiro, Candido Portinari (1903-1962), que tem sua obra lembrada e é homenageado em novo espetáculo infantojuvenil da companhia, intitulado Por Ti Portinari.

Portinari.Espetáculo da Cia. Druw apresenta o universo do artista ao público infantil. Foto: Silvia Machado

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A outra produção, por sua vez, lança luz sobre o universo pictórico e escultórico da artista japonesa, naturalizada brasileira, Tomie Ohtake (1913-2015). Fruto de parceria entre a performer Emilie Sugai e o diretor Lee Taylor, o espetáculo, chamado AKA, tem como referência a dança butô, expressão desenvolvida pelo japonês Tatsumi Hijikata nos anos 1950 e ligada a movimentos de vanguarda. Idealizado para ser encenado presencialmente, o trabalho foi transposto para o formato audiovisual pelo cineasta Joel Pizzini, parceiro de criação de Sugai desde 2003.

Sobre o cruzamento entre arte e dança, o diretor Lee Taylor avalia que a “troca ampliou ainda mais as possibilidades de leitura de ambas linguagens por alimentar o imaginário e revelar diversas nuances resultantes dessas fricções”. Entre os recursos cênicos explorados em AKA, por exemplo, as cores utilizadas por Tomie em suas obras pontuam diferentes momentos do espetáculo.

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Levar essa combinação de linguagens às crianças, como é o caso de Por Ti Portinari, impõe ainda outros desafios. De acordo com Miriam, a concepção envolve reflexões sobre quais “ganchos” retirar da obra e da vida do pintor e sobre como estabelecer pontes que “dialoguem e encontrem ressonância com o imaginário infantil”. Considerando que o espetáculo tem como ponto de partida a dramaticidade dos painéis Guerra e Paz, produzidos por Portinari entre 1952 e 1956 e exibidos na sede da ONU, em Nova York, esses desafios ficam ainda mais evidentes.

Guerra e Paz. Painéis de Portinari são ponto de partida. Foto: Silvia Machado

Portinari em cena. O espetáculo da Cia. Druw é resultado de um antigo desejo de Miriam. A preocupação com os direitos autorais, contudo, fez a diretora engavetar o projeto. Em 2019, a partir de uma conversa com Marcela Benvegnu, curadora de um festival do qual sua companhia participava, a ideia tornou-se mais factível: Marcela sugeriu apresentar Miriam a João Candido Portinari, filho do artista, que não hesitou em acolher a proposta e acabou até mesmo colaborando com o espetáculo. “O João é de uma grande generosidade. Tem um amor pela obra do pai e, por isso, digo que é um herói. Só temos acesso a esse acervo por causa de todo o trabalho que ele desenvolveu, viajando pelo mundo, catalogando as obras. Foi muito acolhedor conosco”, conta Miriam.

“Quando comecei a escrever o projeto, a obra que acabou me arrebatando foi Guerra e Paz, quando mal sabíamos que entraríamos na guerra”, brinca a diretora, referindo-se à pandemia. Em um processo criativo “colaborativo”, que envolveu a diretora, os bailarinos (dentre eles, os atores Thiago Amaral e Fabrício Licursi) e a consultoria de Cristiane Paoli Quito, o grupo passou a investigar qual era a “travessia” da guerra para a paz. Um dos “insights” que acabaram pautando o espetáculo foi que, no painel da Guerra, Portinari universalizou a dor, mas também imprimiu na tela as suas memórias de infância, ligadas aos retirantes. Vem daí também a travessia: “Ele foi para o mundo e quis voltar pra Brodowski; quis retomar a paz retornando ao estado de infância”, diz Miriam. Foi assim que surgiram os “ganchos” e as “pontes” para a encenação.

A forma de conectar a tensão entre a paz e a guerra com o universo infantil foi a inserção em cena de uma série de brincadeiras que trazem conflitos dentro delas, como a amarelinha – que vai do inferno ao céu –, ou nos próprios nomes, como “cabo de guerra” e “vivo ou morto”. Tudo isso trazendo à tona, em projeções, outras obras do artista, como Os Retirantes (1944), Os Espantalhos (1959) e Meninos no Balanço (1960). A trilha sonora, assinada por Ed Côrtes, acompanha a tensão da dramaturgia, costurada ainda pela leitura de poemas de Portinari e de trechos do livro Meninos de Brodowski, de João Candido. Uma das principais preocupações, segundo Miriam, era não tornar a produção do artista um mero “pano de fundo”. Assim, o título ressoa outros sentidos: “O ‘Por Ti’ não é apenas uma homenagem a ele; mostra que o espetáculo atravessa a obra dele”.

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Cores.Fases de Tomie em cena. Foto: Emidio Luisi

Universo de Tomie. Pode-se dizer que AKA, mais do que uma homenagem, também propõe uma travessia – no caso, pela obra de Tomie Ohtake. “Nós não vamos mostrar as obras dela, mas é como se, pela dança, a pintura fosse nascendo do meu corpo”, explica a performer Emilie Sugai. Parceiros de longa data, desde a época em que integraram o Centro de Pesquisa Teatral de Antunes Filho, ela e Lee Taylor planejavam o espetáculo antes mesmo da morte de Tomie, em 2015. “A pesquisa para criação do trabalho teve como ponto de partida o pensamento zen, o vazio e a noção de infinito. Na busca por referências, me lembrei de Tomie e percebi que fazia muito sentido nos aprofundarmos em suas criações”, conta o diretor. A morte da artista acabou fortalecendo, segundo ele, a vontade de homenageá-la.

O espetáculo é dividido em quatro “estações”, ligadas às diferentes linguagens trabalhadas pela artista: esboços, gravura, pintura e escultura. As cores atribuídas a cada uma delas (o branco, o amarelo, o azul e o vermelho) eram as mais empregadas por Tomie em suas criações e reforçam agora a proposta sensorial da encenação.

Com a pandemia, a solução encontrada para apresentar a produção foi adaptá-la ao formato audiovisual. A dupla convidou o cineasta Joel Pizzini para filmar a performance no Teatro Faap e, então, transmiti-la virtualmente. Eles reconhecem que o formato possibilita que a obra seja vista de qualquer lugar e por outros ângulos, lamentam a perda de contato mais imediato com o público, mas esperam que acabe por despertar a vontade de ver a produção ao vivo, quando isso for possível.

SERVIÇO

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Por Ti Portinari: 28/1, 18h; 30 e 31/1, 12h, 16h e 18h; 29/1, 1º, 2 e 3/2, 12h e 18h. Grátis. Acesso em youtube.com/ciadruw.AKA: 5ª, 19h; 6ª e sáb., 20h; dom., 17h. Até 7/2. Grátis. Acesso em sympla.com.br/aka.

TRAJETÓRIAS

Tomie Ohtake

Nascida no Japão e naturalizada brasileira, a artista é lembrada pelo abstracionismo informal e pelo diálogo com diferentes linguagens. Morreu em 2015, aos 101 anos.

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Candido Portinari

Nome de destaque do modernismo, consagrou-se pela pintura de personagens como trabalhadores e imigrantes. Seus icônicos painéis Guerra e Paz ocupam a sede da ONU.

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