Há exatamente um ano, a atriz Camila Pitanga e outros artistas da companhia brasileira encantavam o público com a montagem de Por Que Não Vivemos?, peça dirigida por Márcio Abreu em que o elenco cruzava os corredores do Teatro Cacilda Becker, em São Paulo, e até se sentava junto à plateia, ousadia estética na encenação de um texto inacabado de Chekhov. “Era uma troca muito grande, diferente da relação que vamos criar agora”, diz Camila ao Estadão, por meio de uma ligação telefônica de vídeo.
Ela fala de sua casa, no Rio, onde, neste domingo, 7, a partir das 19h, vai encenar Matriarquia em Processo, peça que terá transmissão online e gratuita dentro da plataforma “#emcasacomosesc”, do Sesc São Paulo. Durante mais ou menos uma hora, Camila será Stela, uma agente de saúde que, em constante estado de vigília, passa a ter delírios auditivos, o que lhe permite tanto dialogar com a filha como reencontrar a mãe no fundo de suas memórias. E, nesse elo de gerações, ela se conecta com a própria história.
A apresentação desta noite é fruto de uma série de encontros de Camila com outras artistas, que permitiu uma série de reflexões. “O trabalho surgiu a partir do isolamento provocado pela pandemia e da procura de várias chaves de cura deste distanciamento”, conta Camila, que percebeu o fio da meada da trama quando fazia exercícios e pesquisa de voz com a preparadora vocal Lucia Gayotto.
Disposta a exercitar sua arte (“o trabalho me alimenta”), Camila pensou, ao lado de Lucia, em encenar um texto já existente, mas, à medida em que estudavam textos, uma notícia exibida na TV sobre profissionais de saúde, exatamente no dia 29 de maio do ano passado, convenceu as duas de que teria nascer uma nova peça. Mais: que a personagem principal teria de ser uma agente da saúde.
Foi quando a dupla convidou a dramaturga Dione Carlos para participar da empreitada. Uma escolha plenamente acertada, pois ela gosta de trabalhar com as diversas ressonâncias da palavra. “Penso no texto como música, desde sempre, criado para ser uma palavra viva que habita uma voz, um corpo, capaz de promover o encontro, a troca entre sensibilidades”, conta Dione. “No caso, entre intérprete e público. A musicalidade da palavra é capaz de nos despertar da anestesia promovida pelo excesso de informação e imagem do mundo em que vivemos.”
A dramaturga explica que criou uma estrutura dramatúrgica pensando nos dramas negros, em que as narrativas são encenadas pelas ruas, de cidade em cidade, com cânticos e danças. Isso atende ao desejo de Camila, por exemplo, de cantar e dançar em cena. E também enfrentar o desafio de alternar a palavra falada com a cantada, sem parecer que está estrelando um musical. “A palavra cantada promove encantamento, ativa nossos sentidos, atua como convocação poética e não como um convite para se ter uma opinião sobre algo”, acredita Dione. “O exercício da escuta ativa, receptiva, positiva é algo que precisamos voltar a estimular. Desta forma, nossas vozes estarão nos lugares que ocupamos movidas por proposições concretas, reais, coletivas, transformadoras.”
O trabalho, portanto, progredia e necessitava de uma direção – foi quando chegou Cristina Moura, fechando um atuante e acarinhado quarteto feminino. E seu primeiro desafio foi criar uma concepção cênica para uma transmissão online. “O teatro é o que nos move, mas é muito instigante e desafiador visitar outras linguagens. Ao pensar Matriarquia em Processo, a ideia foi flertar com o audiovisual, vislumbrei até mesmo uma versão para um filme curta, mas, em algum lugar, o pensamento para uma sala de teatro foi o que sempre nos norteou.”
De fato, a expressão “em processo” do título já revela que o trabalho terá novas fases. “A próxima será uma encenação ainda online, mas já em um teatro”, conta Camila. “Até chegarmos à esperada apresentação diante de uma plateia.” A atriz acredita que o texto, até lá, não sofrerá muita modificação, pensamento compartilhado com a diretora. “Acredito que a montagem em um teatro irá herdar bastante dessa versão que fazemos agora, mas o resultado será muito diferente. O cenário poderá ser até ser o mesmo, uma transposição da espacialidade que criamos na casa de Camila nesta etapa”, comenta Cristina. “Imagino que muito provavelmente teremos imagens projetadas no espetáculo presencial, mas o certo é que não haverá a câmera entre público e espectador e, do fato de o encontro ser vivo e direto, vai determinar a movimentação, o jogo, o ponto de vista e a intensidade da cena.”
O desafio de estar praticamente sozinha em cena (estará apenas acompanhada do musicista Luiz Gayotto) impõe barreiras que precisam ser ultrapassadas por Camila Pitanga. A começar pelo trabalho vocal, que exige disciplina e rigor no controle, por exemplo, da respiração. “Por isso, ela precisa estar disponível ao preparo vocal diário, além de revelar um despudor em se expor na voz cênica e se arriscar em seus desenhos emotivos”, conta a preparadora Lucia Gayotto, que explica como funciona falar cantado sem estar, de fato, cantando: “Ao treinarmos as várias passagens entre o cantar e o falar como, por exemplo, o rap ou o funk, estamos margeando aquilo que não é puramente uma coisa ou outra, mas sua mistura”.
Perguntada se os diferentes sotaques brasileiros ajudam nessa concepção, Lucia é taxativa: “Essa diversidade é uma verdadeira aquarela ritmo-melódica, em que a prosódia da língua portuguesa ganha novos acentos, melodias e timbres, fundamentais para a pesquisa solo”.
Detalhes significativos e que vão permitir que Camila transmita com riqueza de detalhes o trabalho proposto pelo encontro dessas e de outras mulheres. Afinal, o texto traz, camufladas, histórias que a atriz viveu com a mãe e que estabelecem um contato com sua filha. “Lá, estão hibridizados muitos fatos pessoais, mas ressaltamos aqueles que também são universais”, observa ela. “Fala de um mundo interior e ainda transmuta a dor que vivemos hoje.” Assim, a solidão da personagem Stela gera epifanias, que permitem, por exemplo, que ela converse com plantas. “Stela entra em estado de graça e cria um diálogo interno com momentos de gritos e de dor”, observa a atriz que, durante o processo criativo, explorou o universo literário de uma escritora especialista em desvendar os mistérios do mundo interior do ser humano: Clarice Lispector. “Ensaiávamos de dentro de nossas casas, então é como se estivéssemos realmente visitando nossas intimidades”, completa Dione.
Para a encenação, Camila adaptou um escritório de sua casa. Lá, todos os quadros da casa foram colocados no chão e de costas. E uma luminária se transformou em uma cabeça. E, apesar da peça ser transmitida, a atriz não vai se preocupar em olhar sempre para a câmera. “O importante vai ser transcender a dor para celebrar a vida por meio da evocação das mulheres da minha história, da minha ancestralidade.”
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