Em Não Nem Nada, primeira peça de Vinicius Calderoni, escrita em 2011 e lançada três anos depois, quatro atores só se comunicavam pela tela do celular em diálogos picotados, quase histéricos. Também sob seu texto e direção, Ãrrã, de 2015, mostrava, em uma das cenas, o pronunciamento de um presidente pedindo à população que evitasse o pânico por causa de um vírus disseminado na Ásia. Por fim, Os Arqueólogos, outra obra de Calderoni, dirigida por Rafael Gomes em 2016, é ambientada em um futuro em que o abraço virou impedimento, uma vaga memória do passado.
As três dramaturgias antecipavam um caos que até dois verões parecia objeto de ficção científica, mas já davam sinais perceptíveis a quem fugisse das vistas grossas. “Os textos do Vinicius têm uma lógica que flerta com o apocalipse e me impressiona como chegamos rapidamente a um tempo em que só nos comunicamos pelas janelas do computador e não abraçamos nem quem mais gostamos”, observa Rafael Gomes, de 39 anos, fundador, ao lado de Calderoni, da Companhia Empório de Teatro Sortido, que, em setembro de 2020, alcançou uma década de atividades, mas, por motivos óbvios, adiou a comemoração.
A dupla, no entanto, entendeu que não dava mais para esperar e inaugurou a Mostra Companhia Empório de Teatro Sortido – 10 Anos, que ocupa o Tusp até 13 de março. “Nós não aceitaríamos fazer uma versão online porque não dá para imaginar espetáculos testados no calor do público convertidos em linguagem digital”, justifica Calderoni, de 36 anos. A euforia, então, será controlada, os abraços rápidos ou trocados por batidas de mãos calorosas. Os debates e o clima de retomada, porém, segundo a dupla de autores e diretores, prometem fazer jus à celebração.
Quatro espetáculos, Ãrrã, Os Arqueólogos, Não Nem Nada e Chorume, e cinco leituras encenadas, Jacqueline, Um Bonde Chamado Desejo, Gotas d’Água Sobre Pedras Escaldantes, O Convidado Surpresa e Cambaio, com seus elencos originais, reunindo 46 atores, serão apresentados com ingressos gratuitos. “Vamos rever colegas que não encontramos desde que as montagens pararam, por isso tudo tem o cheiro e a potência de um reencontro”, diz Gomes. O marco inicial da companhia, a peça Música para Cortar os Pulsos, escrita e dirigida por Gomes em 2010, foi vista nos teatros Paulo Eiró e Arthur Azevedo, entre os dias 14 e 23 de janeiro, como pré-estreia do evento.
Gomes e Calderoni se conheceram em 2005 na Faap (Fundação Armando Álvares Penteado). O primeiro, formado em cinema, levou o seu curta-metragem Alice para uma exibição seguida de debate com os alunos da faculdade. Calderoni, então estudante de audiovisual, se entusiasmou com o filme e com a fala do futuro sócio. “Pensei na hora que queria ser amigo daquele cara”, lembra. Os contatos via Orkut, a rede social da época, se intensificaram, outros papos vingaram e Calderoni, que também é músico, convidou Gomes para dirigir clipes e shows dele e de sua banda, a 5 a Seco.
O resto é uma história bem-sucedida, de rara comunicação com diferentes públicos e uma imediata chancela da crítica. Nestes dez anos – ou, melhor, quase 12 –, soma-se uma dezena de espetáculos reconhecidos pelas principais premiações, como a APCA, Shell e APTR, totalizando 14 troféus, e excursões por 40 cidades brasileiras. A plena sintonia não é empecilho para a dupla realizar projetos sob encomenda, externos à companhia, como Gota d’Água, levantado por Gomes, ou o musical Elza e o monólogo Sísifo, assinados por Calderoni. “Nossa preocupação é com a ressonância do trabalho porque não nos interessa fazer teatro apenas para os iniciados”, avisa Calderoni.
Tamanho empenho em atingir a plateia leva os artistas a tratar com cautela um projeto, que, para olhos estranhos, parece uma viagem aos seus próprios umbigos. Trata-se de Egotripas, título provisório de um documentário cênico, previsto para ganhar o palco em 12 de março, penúltimo dia da mostra. Em cena, Gomes e Calderoni representarão a si mesmos, secundados por dois atores indefinidos que também interpretarão os autores-diretores. “A gente quer falar da história do teatro em nossas vidas e da nossa própria relação pessoal”, antecipa Gomes. “Eu me interesso por abordar uma amizade que não é tão comum de se estabelecer, até mesmo por eu ser gay e o Vinicius heterossexual, mexer em questões que envolvem sentimentos e contradições entre nós.”
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.