Crítica: Yoshi Oida faz reinvenção com a 'Canção da Terra', de Mahler

Espetáculo imperdível dirigido pelo japonês ganha a forma de pocket-ópera e resgata o impacto original da obra

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Por Redação

A direção cênica de Yoshi Oida ilumina de modo arrebatador A Canção da Terra, no espetáculo imperdível que estará no Sesc Pinheiros até 14 de janeiro. A distância entre as versões habituais em forma de concerto e essa encenação é imensurável. Oida consegue o milagre de resgatar o impacto original dessas seis canções sinfônicas, ou “sinfonia para tenor e barítono ou contralto e orquestra”, como Gustav Mahler a chamou – aqui reinventadas como pocket-ópera.

De repente, mas suavemente, somos transportados para uma cerimônia fúnebre budista. O jardim zen japonês convive com o ruído inexorável do moinho d’água. A natureza impõe-se como ator principal no drama do casal que perdeu a filha. O pai, bêbado, retorna depois de muito tempo; a mulher chora as duas perdas, do marido e da filha. 

Oida consegue o milagre de resgatar o impacto original dessas seis canções sinfônicas Foto: Nicolau SPADONI

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Já imersos nesse microcosmo em que o ciclo vida-morte-vida da natureza torna sem sentido o sentimento de perda, nossos ouvidos embarcam numa música camerística translúcida, interpretada com empenho pela mezzo-soprano Masami Ganev e pelo tenor Miguel Geraldi, acompanhados pelo ótimo Ensemble Fukuda e os quatro monges budistas.

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Os versos da Canção da Terra foram extraídos do livro A Flauta Chinesa, de 1907, tradução alemã de poemas chineses dos séculos 8.º e 9.º feita por Hans Bethge, a partir de versão francesa. 1907 foi um dos anos mais duros na vida de Mahler: primeiro morreu a sua filha Maria Anna de apenas 4 anos; depois uma campanha antissemita da imprensa austríaca o obrigou a demitir-se do posto de diretor-geral da Ópera Imperial de Viena; e, finalmente, diagnosticou-se sua malformação cardíaca. Em carta a Bruno Walter, Mahler escreveu: “Tudo aquilo que eu julgava ser desapareceu de um dia para o outro”. 

De fato, a vocação dessa obra é lírica. Oida comprova isso, num gesto de gênio, transformando-a em “ópera”. O arranjo camerístico ressalta o acerto da opção. Mahler acena com o motivo lá-sol-mi, da escala pentatônica, para a estética oriental. Uma nova noção de tempo se impõe, a do eterno ciclo da vida e da morte. Yoshi Oida conta, no texto do programa, que trabalhando com um grupo mexicano, ofereceram-lhe uma festa de aniversário por seus 40 anos. “Quando cantaram ‘feliz morte’, surpreso perguntei-lhes por que não feliz aniversário? Responderam que o nascimento e a morte são a mesma coisa, sendo a morte a preparação para o nascimento, e o nascimento a preparação para a morte. Ambos são eventos felizes.”

Masami Ganev e Miguel Geraldi encarregam-se de três canções cada um. Mas o maior desafio sem dúvida é o de Ganev, na sexta, “A Despedida”, que dura quase o mesmo que as cinco anteriores. Os versos são de dois poetas chineses do século 8.º. Os derradeiros versos são do próprio Mahler: “Em toda parte a amada Terra/ Floresce na primavera e reverdece/ Uma vez mais! Em toda parte eterno/ Azul resplandece na imensidão!/ Eterno... Eterno...”.

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