Para o dramaturgo e diretor Zé Celso Martinez Corrêa, não há nada mais medieval que a crença cega em Deus e no Diabo. “Há algum tempo, as pessoas entenderam que estão além do bem e do mal e podem ter um pouco de cada coisa dentro de si”, afirma ele, aos 85 anos, um dos fundadores do Teatro Oficina. “Essa mentalidade foi reavivada nos últimos anos pelo presidente que está no poder.”
Nos últimos dias, Zé Celso ficou perplexo com as polêmicas em torno de um vídeo divulgado pela primeira-dama, Michelle Bolsonaro. As imagens mostram o ex-presidente e candidato petista Luiz Inácio Lula da Silva em um ritual de umbanda, em 2021, com pipocas lançadas à sua cabeça. A reação imediata de apoiadores de Jair Bolsonaro foi associar a sessão a um pacto do político com o Diabo. “Por isso, a cada dia que passa, entendo que Fausto é a peça do ‘aqui e agora’ e vamos ter inúmeras modificações inspiradas nos noticiários”, comenta o encenador. O novo espetáculo de Zé Celso, com codireção de Fernando de Carvalho, estreou na sexta, dia 12, no Teatro Paulo Autran do Sesc Pinheiros e é adaptado de A Trágica História do Doutor Fausto, peça do dramaturgo inglês Christopher Marlowe (1564-1593). A obra ajudou a consolidar o mito do médico ambicioso que, empenhado em obter uma sabedoria cada vez maior, faz um acordo com o demônio.
Travessia
“É um texto mais claro e teatral que o famoso Fausto escrito por Goethe”, adverte o diretor. “Criamos um Fausto brasileiro fazendo a travessia, que é essa grande transformação de sair de uma pandemia e de um governo que colocou o Brasil no baixo calão e esperar por dias mais democráticos.”
A ideia de levar Fausto aos palcos veio do ator Ricardo Bittencourt, que protagoniza a encenação, depois de ter trabalhado com o diretor no recente Esperando Godot. Ele assistiu na Alemanha a uma montagem do Fausto de Goethe e se encantou com as releituras do mito. “Nenhum tema é mais vivo e instigante, o eterno e insatisfeito espírito de busca do conhecimento, a sede irrefreável de saber, de poder, do viver”, diz Bittencourt, no programa da peça. O espetáculo reúne outros nove atores, muitos deles conhecidos de quem acompanha o Oficina, como Marcelo Drummond, que representa Lúcifer, Sylvia Prado, Gui Calzavara e Roderick Himeros, além de uma banda que executa a trilha ao vivo. Quem volta a trabalhar com Zé Celso depois de duas décadas é a atriz Leona Cavalli, que entra em cena como Mefistófeles, ou seja, o próprio Diabo. “Mefistófeles é o inferno que existe dentro de cada um e, para alguns, pode ser o paraíso”, afirma ela. “Esse ser andrógino não é o diabo que vem assombrar o ser humano, tanto que quem o procura para firmar o pacto é Fausto.” Leona parece feliz de voltar ao Oficina. Sob o comando de Zé Celso, a artista gaúcha, recém-chegada de Porto Alegre, considera ter feito sua estreia profissional em 1993. O espetáculo era Ham-Let, versão antropofágica da tragédia de Shakespeare, em que viveu Ofélia. Depois, vieram Mistérios Gozosos, Para Dar um Fim no Juízo de Deus, As Bacantes e Cacilda!, de 1999, que teve Leona como uma das intérpretes da grande diva dos palcos.
Rompidos
Zé Celso rompeu com Leona porque os dois buscavam caminhos artísticos e pessoais divergentes. Um dos embates ocorreu em As Bacantes porque, segundo o diretor, a intérprete insistia em tocar um berrante grudado ao coração dele, algo de que ele discordava. “Mas sempre a considerei uma grande atriz e, agora, ela fez TV, ficou famosa e está mais aberta”, declara. Leona reconhece que o tempo fez bem aos dois. “A gente amadureceu, e o Zé tem uma delicadeza, um olhar único para o ator, que conserva aquela revolta em cena, mas sem perder a ternura.” No espírito do “aqui e agora”, o Fausto brasileiro traz à tona, em tom crítico, associações à realidade. Os empresários da Faria Lima estão sugeridos em algumas cenas. Em outra, um grupo de acadêmicos visita o protagonista e leva informações sobre as recentes manifestações democráticas. No segundo ato, mais leve, elementos da chanchada são lembrados na figura de um papa ortodoxo e de uma homenagem ao ator Grande Otelo. Ao contrário da maioria das peças do Oficina, Fausto foi levantada no tempo recorde de um mês de ensaios. Os figurinos ficaram prontos na véspera da estreia. “É bom porque dá o calor da hora, deixa o espetáculo vigoroso. Mas, claro, vamos estrear imaturos e ganhar fôlego na temporada”, avisa Zé Celso.
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