Os festejos do centenário de nascimento de Bibi Ferreira, nesta quarta, 1º, incluem o lançamento de uma biografia afetiva e da volta do espetáculo Bibi, Uma Vida em Musical, ambos no Rio de Janeiro
Bibi – A Saga de uma Diva (Editora Batel) foi escrita pela atriz e jornalista Jalusa Barcellos, amiga de Bibi com quem dividiu o palco diversas vezes, em mais de 40 anos de convívio. O livro, com mais de 600 páginas, será lançado no Teatro Cesgranrio, no Rio, e traz, segundo o escritor Sergio Fonta (autor de um dos prefácios), “o raio X da alma” da grande atriz, que também foi cantora, diretora, dramaturga, iluminadora e produtora.
Já o musical entra em cartaz na sexta, 3, no Teatro Riachuelo, no Rio – em setembro, retorna a São Paulo, no Teatro Claro. Escrito por Artur Xexéo e Luanna Guimarães e com direção geral de Tadeu Aguiar, o espetáculo marca um dos grandes momentos da atriz Amanda Acosta que, no papel de Bibi, ganhou inúmeros prêmios teatrais graças a uma interpretação perfeita e cuidadosa nos mínimos detalhes.
O espetáculo acompanha todos os grandes momentos de Bibi Ferreira, desde seu nascimento, festejado pelo pai, o ator Procópio Ferreira (1898-1979), que a encaminhou para a carreira artística, até a consagração como intérprete de grandes musicais internacionais (My Fair Lady, O Homem de La Mancha, Alô, Dolly) e nacionais (Gota d'Água), sem se esquecer das homenagens que prestou a outros grandes intérpretes, como Edith Piaf, Amália Rodrigues e Frank Sinatra. Diante de uma história tão rica, os roteiristas optaram por um caminho ficcional: ambientar a trama em um circo, onde a tradicional peça apresentada por esses artistas conta a história de Bibi.
A história de Bibi Ferreira
Nascida Abigail Izquierdo Ferreira, em 1922, Bibi sempre gostou de contar a certeza do pai de que ela seguiria a carreira artística. "Não quero mais morrer! Nasceu a primavera da minha vida. Ganhei uma filhinha de nome Abigail, a quem chamarei de Bibi. Ela vai cantar, representar e fazer muitas coisas bonitas em um palco", escreveu Procópio a um amigo.
E, como prova de que não estava blefando, Bibi estreou no teatro com apenas 24 dias de vida, ao substituir no palco uma boneca que desaparecera pouco antes do início da peça Manhãs de Sol, escrita por seu padrinho, Oduvaldo Viana (pai), marido da cantora Abigail Maia. A primeira aparição de Bibi foi no colo de sua madrinha, de quem herdara o nome.
Os críticos apontam Procópio Ferreira como um ator de comunicação exuberante, mestre ao matizar suas frases com as mais ricas inflexões, capaz de levar a plateia ao delírio com um simples revirar de olhos. E, desde seu primeiro êxito, em 1919, com Juriti, de Viriato Correa, sua carreira estendeu-se por seis décadas. A vida artística, no entanto, o obrigava a passar longos períodos longe de casa, o que reservou para Aida, a bailarina espanhola mãe de Bibi, a tarefa de educá-la.
Recusada pelas freiras do renomado Colégio Sion, no Rio, “por ser filha de artistas”, Bibi estudou no Anglo-americano. Também estudou balé, canto e música. Aos 3 anos, numa excursão de sua mãe pela Argentina e pelo Chile, apresentou um “número” de dança flamenga em Santiago, para espanto do público. Aos 19 anos, recebeu um telegrama de seu pai, instalado em São Paulo, convidando-a para atuar em sua companhia. Bibi hesitou, queria ser bailarina e não atriz, mas acabou aceitando o convite. A peça era Mirandolina, de Goldoni, no qual conquistou um relativo sucesso.
O espetáculo seguinte, no entanto, Noite de Amor, de Ladislau Fodor seria um desastre. No papel de ‘amante’ do personagem vivido por Procópio, ambos chocaram o conservador público cativo do ator. Sobretudo porque numa noite Bibi soltou essa pérola: “ainda bem que estamos sozinhos aqui, neste quarto, papai”. A curta temporada, obviamente, encerrou-se aí. Depois de atuar em mais algumas peças com o pai, aos 22 anos fundou sua própria companhia em 1945, acumulando as funções de atriz e empresária. Com a Companhia Bibi Ferreira produziu e atuou em peças como O Noviço, A Moreninha e Senhora.
Em 1947, com dívidas, aceita um convite para participar de um filme na Europa. Sob direção de Michael Powell atua em Fim do Rio, no qual contracena com o então conhecido ator indiano Sabu. Aproveita para estudar na Royal Academy of Art, durante um ano. De lá traz os direitos da peça Divórcio, com a qual faz sua primeira direção, com Procópio no elenco. Segue carreira, produz e dirige duas Revistas do Ano, Escândalos de 1950 e Escândados de 1951. Nesse mesmo ano, casa com o empresário Hélio Ribeiro, com quem tem uma filha, Tereza Cristina. O casamento durou dois anos. Em 1956, viaja para Portugal, onde passa quatro anos.
Na volta, apresenta na TV Excelsior um programa de variedades e entrevistas de retumbante sucesso, produzido por Manoel Carlos, Brasil 60 que dura quatro anos e tem reedições recicladas em outras emissoras, ao longo de anos. No primeiro ano do programa ela ganhou seis prêmios. Nada a ver com as louras que atualmente exibem seu péssimo português na telinha. Para se ter idéia, quando o filme Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro estreou em Cannes, Glauber Rocha estava no programa da Bibi. Carlos Drummond de Andrade, Chico Buarque e Otto Lara Rezende foram alguns dos muitos entrevistados que passaram por lá.
Décadas mais tarde, ela ainda gostava de relembrar seu pior entrevistado, jogador de futebol Bellini. “A cada pergunta ele dava respostas monossilábicas: sim, é, não.”
Curioso notar que Bibi Ferreira passou ao largo de todos os movimentos teatrais que fizeram ferver a cena entre 1940 e 1970 no Brasil – Teatro Brasileiro de Comédia, Arena, Oficina entre eles. Num longo e brilhante texto publicado em 1973, na Revista Manchete, o dramaturgo Paulo Pontes, com quem a atriz foi casada, escreveu um longo texto intitulado Como Definir Bibi? no qual tenta encontrar uma unidade na carreira dessa atriz “com vocação para o ecletismo.” Traça com precisão um perfil no qual ressalta qualidades como a inteligência, a disciplina, o apuro técnico e – traço fundamental de seu caráter – uma amor inexcedível pelo espetáculo. Mas nem ele consegue descobrir ‘unidade’ em sua carreira.
Ecletismo é mesmo a palavra chave na carreira dessa artista. Dirigiu desde espetáculos como Brasileiro: Profissão Esperança, como shows de cantoras do primeiro time, entre elas Clara Nunes, até shows de travesti, como Gay Fantasy, na Galeria Alaska, em Copacabana, que tinha como estrela a travesti Rogéria, de quem se tornaria uma grande amiga. Rogéria seria convidada por Bibi, anos depois, para estrelar o musical Rock Santeiro, adaptação teatral da peça O Berço do Herói, de Dias Gomes, que também já tinha virado novela na rede Globo.
Disciplinada, Bibi sempre orgulhou-se de sua vida monástica. Jamais fumou ou bebeu, fazia ginástica diariamente desde muito jovem, dormia muito e tinha horror ao sol, dizia que prejudicava a voz por secar as mucosas. Aperfeiçoou seu canto a ponto de apresentar-se com orquestras sinfônicas em várias edições do espetáculo Bibi in Concert. Em uma de suas últimas aparições no palco, ela viveu o papel da cantora Amália Rodrigues, em impressionante mimese. Não só ficou fisicamente parecida com a cantora portuguesa, como aos 80 anos ainda cantava lindamente.
Em 2012, foi homenageada ao inspirar o nome do Prêmio Bibi Ferreira, um dos mais importantes do teatro musical brasileiro, criado pelo ator e produtor Marllos Silva.
Aos 95 anos, fez sua turnê de despedida com Bibi – Por Toda Minha Vida, espetáculo só com músicas brasileiras. Com 96, morreu em seu apartamento no bairro carioca do Flamengo, no dia 13 de fevereiro de 2019, de parada cardíaca.
Nos últimos anos de sua carreira, dirigiu muitas peças, a grande maioria comédias digestivas, que muito provavelmente serão esquecidas com o tempo. Ao contrário da artista Bibi Ferreira, que sem dúvida imprimiu seu nome definitivamente na história do teatro brasileiro.
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