A arte é capaz de filtrar a realidade e exibir suas mais terríveis características, independentemente de quando foi criada. É o que se observa nos mais recentes trabalhos do encenador mineiro Gabriel Villela. Em 2018, por exemplo, ele estreou Estado de Sítio, peça lançada em 1948 pelo franco-argelino Albert Camus e que mostra um país dominado por um regime totalitário e assolado por uma peste. Agora, sua mais recente montagem, Henrique IV, é uma adaptação da obra de 1922 do italiano Luigi Pirandello, sobre um homem que, após uma queda do cavalo e uma pancada na cabeça, vive (ou finge viver) o personagem que representava em uma festa de carnaval.
“Toda fronteira é, por natureza, tensa, o que se torna ainda mais evidente quando a ficção espelha a realidade”, diz Villela que, com a estreia de Henrique IV na quinta-feira, 28, no Sesc Vila Mariana, comemora sua 50.ª direção teatral. Desde a estreia profissional em 1989, com Você Vai Ver o Que Vai Ver, ele se tornou um dos principais artistas do teatro brasileiro, sabedor como poucos em equilibrar a tensão entre o gosto pela materialidade opulenta e as demandas de uma vida espiritual. “Mas é o trabalho nascido a partir do encontro com outros artistas, muitos já me acompanham há vários anos”, concede Villela, que poderia marcar seu 50.º espetáculo com Hamlet, de Shakespeare, que já figura como seu próximo projeto. “Mas, antes, era preciso fazer uma reflexão sobre a loucura e a sobreposição de máscaras que tão bem são mostradas por Pirandello.”
A decisão de Gabriel Villela de montar Henrique IV foi reforçada pelos acontecimentos que vêm tomando de assalto o Brasil, “fatos cada vez mais surpreendentes”. E é um cômico e revelador jogo de espelhos que caracteriza a peça ao trazer em cena um jovem (vivido por Chico Carvalho) fantasiado de Henrique IV que perde a razão ao cair do cavalo e bater a cabeça a caminho de uma festa de carnaval, passando a acreditar que é de fato o imperador.
“A multidão acredita e o elege seu comandante”, comenta Carvalho, que novamente oferece uma assombrosa interpretação ao criar um personagem dúbio que se finge de louco pois, como é dito na peça, “é conveniente a alguns que considerem certas pessoas como loucas para terem a desculpa de mantê-las presas. Sabe por quê? Porque é difícil escutar o que os loucos dizem”.Em praticamente toda a sua obra, tanto teatral como romanceada, Pirandello (1867-1936) tratou do conflito entre o que o homem de fato é e o que gostaria de ser, resultando, desse conflito, a dissolução da identidade. “Ele mostra a impossibilidade de existir apenas uma visão da realidade”, completa Carvalho. Na adaptação de Villela, a história é contada por uma companhia de circo mambembe chamada Francisco Eugydio do Calvário, que apresenta ao público o drama de circo-teatro Enrico IV. Em cena, o protagonista luta pelo amor da marquesa Matilde da Toscana (Rosana Stavis), que o trai com o barão Tito Belcredi (André Hendges). Ao lado de Henrique (ou Enrico), para auxiliá-lo, estão os camareiros Oração (Artur Volpi) e Sonho (Breno Manfredini) e, na tentativa de curar sua loucura, o doutor Genani (Hélio Cícero). Completam a lista de personagens Frida (Regina França), filha da marquesa, e Carlo Di Nolli (Rogerio Romera).
“É um circo decadente, quase sem cores, frequentado por fantasmas, como se vê no início do espetáculo”, comenta J.C. Serroni, responsável pela cenografia. “Um circo em desconstrução de uma trupe itinerante com sua carroça encenando por castelos medievais.” Isso se reflete, por exemplo, na maquiagem dos atores, quebradiça, carregada de falhas. “O texto de Pirandello sugere a presença de palhaços, especialmente entre os conselheiros, e todos inicialmente não têm papel definido o que possibilita o jogo cênico da trupe brincando de ser ou de parecer louca”, observa Villela, que joga com o tempo ao selecionar canções contemporâneas interpretadas pelo elenco e pelo músico Jonatan Harold, que toca piano ao vivo além de assinar a direção musical ao lado de Babaya Morais.
Assim, no repertório estão The Logical Song, do Supertramp, Bang Bang (My Baby Shot Me Down), de Nancy Sinatra, Canzone Arrabbiata, de Nino Rota, I Started a Joke, dos Bee Gees, e Lascia Ch’io Pianga, de Georg F. Händel. A escolha levou em consideração fatores como o diálogo das letras com o texto e com a ação da peça. No fundo, a intenção da montagem é ressaltar a importância da palavra, pois Pirandello, assim como Kafka e Borges, é capaz de traduzir a angústia e a inquietude do homem contemporâneo. “Nessa peça, a palavra representa o perigo ao ser usada na crítica à moral burguesa, trazendo dúvida e paradoxo”, comenta o diretor-assistente Douglas Novais. “E o picadeiro permite que o texto desabroche, especialmente quando a palavra cria a espiral da loucura”, comenta o também assistente Ivan Andrade.
É o que faz o protagonista que, ao recuperar a memória perdida depois de bater a cabeça em uma pedra, continua a se passar por louco ao perceber que não tem uma vida de verdade para a qual possa voltar. “Com a impossibilidade de estabelecer uma verdade absoluta, Pirandello reafirma aqui que a arte é mais real e eterna que a vida, diante da efemeridade do homem.”
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