LONDRES – Ah, se eu tivesse um feitiço que me permitisse contar tudo a vocês e depois apagar completamente de sua memória... Mas, embora prestando toda a atenção durante a tarde e noite que passei com Harry Potter and the Cursed Child (Harry Potter e a criança amaldiçoada), que estreou na semana passada no Palace Theater, aqui em Londres, não consegui pegar uma receita que me permitisse jogar amnésia nos "trouxas" – na linguagem de Potter, os não bruxos, como você e eu.
A tão ansiosamente aguardada sequência, em dois atos e com mais de cinco horas de duração, da série de sete romances best-sellers de J. K. Rowling é o tipo de peça que você gostaria de contar em detalhes, se isso ajudasse o leitor a imaginar tudo que ela é. A peça é uma espécie de magia puramente teatral que, de algum modo, conduz a viciante pegada narrativa da prosa de Rowling.
Infelizmente, os que conseguiram ingressos para essa produção, esgotados em maio, ao deixar o teatro receberam buttons advertindo: “#MantenhaOsSegredos”. E não quero entrar em atrito com os fãs de Potter, que tendem a ser tão fiscalizadores e vingativos quanto o exército dos Comensais da Morte que policiam o império do mal d’Aquele Que Não Deve Ser Nomeado, também conhecido como Lord Voldemort.
Voldemort, é claro, já se foi faz tempo. Ou não?
A história de The Cursed Child – concebida por J.K. Rowling, com seu roteirista, Jack Thorne, e o diretor, John Tiffany, levanta algumas questões impossíveis de responder – e não estou fazendo charme por causa de minha promessa de silêncio. Trata-se de um trabalho no qual o passado põe uma sombra de aflição substantiva. O passado, como diria Faulkner, não é nem mesmo passado.
Esse ponto de vista permeia The Cursed Child, que parece transcorrer numa terra de escuridão hipnoticamente luminosa capaz de mesmerizar adultos e crianças. Pela simples existência, a peça é destinada a combater a força gravitacional das memórias dos jovens leitores. Refiro-me àqueles que se tornaram adultos paralelamente a Harry Potter (que foi dos 11 aos 17 anos) nos livros e nos oito filmes blockbusters neles inspirados. Eles podem querer que “o menino sobrevivente” permaneça congelado no tempo, como era quando o viram pela última vez.
Como diz um personagem de The Cursed Child, “vocês sabem que não podemos brincar com o tempo”. Mas, brincar com o tempo é exatamente o que os criadores desse show estão fazendo (as memoráveis imagens da produção incluem os mais deslumbrantemente perturbadores relógios desde Salvador Dalí). A trama é construída na fantasia a que a maioria de nós se entrega desde a mais tenra infância: e se pudéssemos reescrever nossas próprias histórias?
Essa premissa tem sido a base de trabalhos tão distintos como os filmes da franquia De Volta para o Futuro e a recente peça romântica de Nick Payne Constellations. Mas a noção se encaixa nos propósitos de The Cursed Child. A peça desdobra uma espécie de narrativa de múltipla escolha, que permite aos fãs de Harry Potter encontrar alternativas do tipo “poderia ter sido” ou “ainda pode ser” para personagens que já conhecem intimamente e para os novos, introduzidos na peça.
E, sim, a velha gangue está de volta, ou pelo menos os membros que sobreviveram ao último Potter – Harry Potter e as Relíquias da Morte. A primeira cena da peça é idêntica à última do romance, e usa muito do mesmo diálogo.
Harry (Jamie Parker, que faz maravilhosamente as aflições de Potter), agora no limite da meia-idade e funcionário do Ministério da Magia, e sua mulher, Ginny (Poppy Miller), estão na estação ferroviária londrina King’s Cross, vendo dois de seus filhos – James (Tom Milligan) e Albus (Sam Clemmet) embarcando para Hogwarts, a academia de magia que proporcionou a Harry e Ginny uma iluminadora, embora punitiva, educação. Será o primeiro ano do ansioso Albus, que, como o pai, é orgulhoso, rebelde e sensível.
Juntando-se a Harry e companhia estão seus velhos camaradas e aliados na luta contra a escuridão, o pateta Ron Weasley (Paul Thorneley, delicioso) e a eterna primeira aluna Hermione Granger (Norma Dumezweny, atriz negra cuja participação provocou controvérsia, mas está perfeita no papel). Hermione está casada. Ela e o marido são pais de Rose (Cherrelle Skeete), que tamabém está indo para Hogwarts. O antigo arquirrival de Harry, Draco Malfoy (Alex Price), também está na estação, com o filho Scorpius (Anthony Boyle).
Como Albus, Scorpius será calouro em Hogwarts. Os dois garotos parecem destinados a ser ótimos amigos, juntamente com uma amável jovem de cabelos de pontas azuis, Delphy Diggory (Esther Smith). O trio vai se tornar um perigo para quase o mundo inteiro. Um relacionamento pesado, ansioso, entre pais e filhos marca tanto o formato quanto o conteúdo da peça.
E quem é, afinal, essa criança amaldiçoada? Muitos, muitos dos 42 personagens da peça caberiam na descrição. Como os romances que o precederam, The Cursed Child é recheado de complôs misteriosos que desafiam diagramas e fundem lições de vida sentimentais, ao lado de angustiantes mergulhos na solene e torturada solidão da adolescência. A rigor, tal combinação esgotaria a paciência de qualquer adulto. Mas, como nos livros de Rowling, a peça vence as resistências.
Eu reli As Relíquias da Morte no voo de Nova York a Londres, e fiquei espantado de quão naturalmente o que vi no palco parecia fluir das páginas. Thorne, Tiffany, o diretor de movimento, Steven Hoggett, e a cenógrafa, Christine Jones, colaboraram anteriormente na peça de vampiros para adolescentes Deixa Ela Entrar. São todos especialistas em mapear a intersecção do incomum com o cotidiano.
Lado a lado com uma equipe que inclui Katrina Lindsay (figurino), Neil Austin (iluminação) e Imogen Heap (trilha sonora), o elenco de Tiffany conjura o(s) mundo(s) independentes(s) dos livros de Rowling com sagacidade imagística, precisão e, ocasionalmente, terror extremo. Uma convocação de bruxos é mostrada por um turbilhão de capas negras; uma extraterrestre, xenófoba, inquietante e fascista brigada se materializa e multiplica a partir da grande escuridão; e escadas, estantes e valises assumem vidas variadas e milagrosas que impulsionam tanto a temática quanto a história.
Esta produção captura a sensibilidade de Rowling de modo ainda mais persuasivo que o fazem os efeitos especiais dos filmes. Os filmes, é claro, são abençoados por uma incomparável brigada de atores britânicos como Alan Rickman e Maggie Smith, e Ralph Fiennes como Voldemort. Mas, em The Cursed Child, todos no palco são diretamente responsáveis por contar a história. E a maioria deles faz vários papéis – incluindo os atores principais, embora eu não vá revelar como e por que isso acontece. Basta dizer que tais transformações se tornam assustadoras, um reflexo físico de nosso desejo de nos conectarmos com pessoas que pensamos conhecer bem – mortos que pairam em nossas vidas, com os quais já estivemos e vamos estar de novo.
Esse mundo de fé é empático. É essa a magia que tanto nos impacta e entretém em The Cursed Child, transformando todos na plateia em aprendizes de feiticeiro. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ E TEREZINHA MARTINO
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