A peça Master Class, de Terrence McNally, é uma obra de ficção, mas foi baseada em um conjunto de aulas dadas por Maria Callas na Juilliard School of Music, de Nova York. Ao longo de dois períodos de seis semanas, entre 1971 e 1972, a soprano trabalhou com pouco mais de uma dezena de jovens cantores – e, a cada semana, uma aula de duas horas era aberta ao público. Os aúdios desses encontros foram gravados, lançados mais tarde em CD, estão hoje disponíveis no YouTube. E oferecem um olhar precioso sobre o que fez de Callas uma das maiores cantoras de todo os tempos.
Em uma dessas aulas, Callas orienta um barítono na ária Cortigiani, vil razza danata, do Rigoletto de Verdi. Na cena, o personagem título acusa os nobres de terem raptado sua filha e, em seguida, implora a eles que lhe devolvam o seu mais precioso bem. A soprano não está convencida da interpretação do jovem cantor, fica indignada ao perceber que ele não conhece bem a trama da ópera, pede repetidamente que ele revele o drama, a tragédia do personagem. E, a certa altura, faz ao barítono um pedido: “Esqueça a sua voz, esqueça! Preste atenção ao drama.”
Esqueça a sua voz – o conselho parece estranho destinado a um cantor lírico. Mas nele talvez esteja uma explicação para o fenômeno Callas. A voz, para ela, não era um fim em si mesmo mas, sim, um veículo para a expressão do drama pessoal dos personagens, o material que faz da ópera, um gênero tão específico em sua concepção, ser universal em sua mensagem. Para Callas, não parecia interessar a simples beleza do canto – o drama guiava a concepção do personagem e, consequentemente, a maneira de cantá-lo. Tudo isso com um respeito quase obsessivo com a partitura. “As notas, as notas, você tem que cantar as notas”, diz ela em outro momento das aulas na Juilliard, que se encerram com um pequeno discurso: “Eu não sou boa com palavras, mas se há algo que preciso dizer é: não esqueçam a expressão.”
Callas não teve uma carreira longa. Suas dezenas de gravações (a lista oficial contabiliza 69 delas) foram realizadas em um período de pouco mais de uma década. A enorme variedade de papeis, o excesso de apresentações, a inconsequência no palco, a entrega completa ao drama em detrimento da saúde vocal: tudo isso explica o seu rápido declínio em meados dos anos 1960 – e nesse processo também deve ter influenciado a atribulada vida pessoal, que sugere uma mulher profundamente solitária. Em outras palavras, foi a força do canto de Callas o responsável, a certa altura, por torná-lo inviável. Há algo de essencialmente trágico nisso. Não é por acaso que a mulher, transformada em mito, continuou a provocar e interessar as novas gerações – e tornou-se símbolo da própria ópera, sua expressão mais bem acabada.
Espetáculo teve Marília Pêra em montagem de Takl
Cristina Padiglione
Marília Pêra foi Maria Callas em ‘Master Class’ há quase 20 anos. A montagem, com direção de Jorge Takla, estreou em 1997 e cumpriu uma longa e bem sucedida carreira. Mas o encanto da atriz pela personagem vinha de muito tempo antes. “Desde que eu comecei a aprender algumas árias de ópera nas aulas de canto, eu comecei a ver vídeos da Callas, há muitos e muitos anos”, lembra. Foi Jorge Takla quem trouxe o espetáculo ao Brasil, na época, e a convidou para protagonizar a peça. Àquela altura, Marília já havia visto a montagem com Zoe Caldwell, em Nova York, com suas filhas.
“Eu já estava muito envolvia com Callas, adorava, amava, me identificava com uma certa fragilidade dela diante do mundo, ao mesmo tempo parecendo tão forte. Eu achava isso lindo, porque sou assim, frágil diante do mundo. E aquele vozeirão – que eu não tenho... E aquela beleza toda – que eu não tenho... Gostava muito dela.”
+ Christiane Torloni vive a soprano Maria Callas em 'Master Class'
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