“Estão fechando as fronteiras”, escreveu a dramaturga Silvia Gomez para uma amiga, pelo telefone. Não demorou para que ela sentisse que estava falando através de uma personagem de ficção. Na literatura, no teatro e no cinema, obras como A Casa Tomada, de Julio Cortázar, O Anjo Exterminador, de Buñuel, e Esperando Godot, de Beckett, deixaram marcas profundas sobre a ideia de confinamento voluntário ou forçado, real ou imaginado.
O fechamento de teatros e espaços culturais afetou o ritmo das produções e suspendeu o andamento de projetos. O Estado conversou com autores, dramaturgos e pesquisadores para entender o impacto da pandemia do novo coronavírus na criação artística, no ensino das artes, e quais devem ser os problemas da arte no futuro próximo.
Partindo de obras referenciais, o confinamento pode ser visto no surrealismo de O Anjo Exterminador, ressalta a dramaturga e diretora Grace Passô. “Nossa atual situação me lembra muito o filme do Buñuel. Arrisco dizer que a força invisível que impede as pessoas de saírem daquela casa parece o estado vicioso com o qual nos jogamos nas redes e mídias sociais.”
Para outros, o confinamento se assemelha à prisão retratada na obra de Plínio Marcos, aponta o dramaturgo e diretor Kiko Marques. “Barrela traz o confinamento masculino, e Mancha Roxa, o feminino, ambos em cadeias.” O cárcere também é central no livro Princesa, indicado pela dramaturga e professora Ave Terrena, sobre a história da transexual Fernanda Farias de Albuquerque, que se mudou para a Itália para trabalhar na prostituição, e foi presa. “Ela passava bilhetes narrando episódios de sua vida para um preso, que os repassava a Maurizio Janelli, que escreveu essa ‘autobiografia’”, conta.
Com a nova rotina, os artistas alegaram que tiveram projetos suspensos ou adiados. A crise da pandemia que se estende pelo setor cultural não apenas fragiliza a criação como preenche de incertezas o retorno aos palcos, atividade que depende da presença da plateia para acontecer. Para Janaina Leite, vencedora do Prêmio Shell deste ano por Stabat Mater, o que permanece é a surpresa diante de um evento como este. “Estou estarrecida com a nossa arrogância, de um sistema que do dia para a noite se vê colapsado, por uma ameaça invisível, inesperada”, afirma.
Newton Moreno, autor de As Cangaceiras, defende ser importante haver ações para a sustentação dos trabalhadores da cultura neste período. Recentemente, institutos culturais lançaram editais, como o do Itaú Cultural, e as secretarias de Cultura da cidade e do Estado anunciaram a antecipação de prêmios para que os artistas pudessem realizar a pré-produção de espetáculos de dança, teatro e circo, durante o confinamento. “Precisamos encontrar mecanismos para manter aceso nosso teatro e que essas promessas de fomento sejam cumpridas”, ressalta.
No âmbito da formação teatral, Ave Terrena aponta para a situação de escolas e centros de ensino das artes cênicas em São Paulo, como é o caso da Escola Livre de Teatro, de Santo André. “Estamos mantendo as atividades a distância, mas o processo pedagógico fica prejudicado”, conta. “É imprevisível e sem garantia de que vamos receber o salário”, descreve a autora de O Corpo que O Rio Levou.
Tal incerteza dá a dimensão do tamanho da sociedade, suas semelhanças e diferenças. Silvia Gomez recorre às Três Irmãs, de Chekhov, que em um trecho apostou em uma “nova vida na terra”, custasse “dois ou três anos, talvez ainda mil anos”. “Está clara a percepção da brutal desigualdade social e nosso papel nela”, diz a autora de Mantenha Fora do Alcance do Bebê. “É a consciência de que estamos absolutamente interligados como humanidade, de que somos a natureza.”
Para Grace, autora de Vaga Carne, peça também adaptada ao cinema, se a pandemia conseguiu parar um sistema inteiro, a preocupação é sobre o que pode fazer aos mais necessitados. “De um certo modo, dá mais vontade de ser um vírus do que ser cidadã de nosso mundo ou de nosso País. Dói estar num mundo que acaba, através de suas estruturas, escolhendo os pobres para estarem mais perto da morte.”
O clima de insegurança lembra o espetáculo Angels In America, conta Moreno. No auge da epidemia de aids, a peça resgata a política histórica dos EUA no auxílio dos infectados. “O texto questiona as ações governamentais e sua agilidade para responder à ameaça da contaminação na era Reagan”, diz.
Enquanto os habitantes de nosso planeta tentam tocar a vida de dentro de casa, os artistas brasileiros procuram se inspirar na criação de novos projetos ou em ações que possam adiantar. O consumo por música cresceu 15% no Brasil, por exemplo, de acordo com a lista de mais ouvidas no Spotify.
Já as visualizações no País de clipes musicais no YouTube aumentaram em 30 milhões, no período de 3 de março a 9 de abril, comparando-se ao mesmo período do ano passado. A audiência no streaming cresceu tanto que as plataformas tiveram que reduzir a qualidade da transmissão para não sobrecarregar as redes. Diversos portais de cultura foram criados para transmitir espetáculos, debates e oficinas. Prova de que o trabalho do artista tem seu lugar na sociedade em um período crítico.
Sobre o futuro, os entrevistados creem que o mundo sairá da pandemia transformado. “Torço para que surja algo menos desigual”, aposta Moreno. “Acho que algumas convicções se tornarão obsoletas”, diz Marques. Silvia cita Esperando Godot: “Façamos alguma coisa enquanto há chance. Não é todo dia que precisam de nós”. Janaina é ainda mais direta: “Que sirva para a gente baixar a bola”.
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