O tribunal do Twitter analisa a acusação de que a série de ficção científica 1899, que estreou há pouco na Netflix, é um plágio de uma história em quadrinhos brasileira. Como de costume, o trâmite na rede social é marcado por uma algazarra, cheia de piadas, radicalismo, torcida e paixões exacerbadas.
A vítima e denunciante é a quadrinista, ilustradora e youtuber Mary Cagnin. “A série 1899 é simplesmente idêntica ao meu quadrinho Black Silence, publicado em 2016″, postou ela na rede social que hoje pertence a Elon Musk.
A história de ‘1899′
Dos mesmos criadores de Dark, 1899 vem da estirpe de Lost, com diversos núcleos dramáticos e um novelo infindável de enigmas. Versa sobre um navio que leva mais de mil passageiros da Europa à América no final do século XIX. A tripulação é multicultural, o que se reflete nos diversos idiomas falados. A série convida o espectador a assistir com áudio original e legendas.
O curso da viagem é alterado quando a embarcação se depara com outra nau, que até então era dada como desaparecida. O único tripulante a bordo do navio à deriva é uma criança silenciosa, com uma pirâmide negra nas mãos.
Esse fio costura uma colcha de referências da ficção científica de viés psicológico, de A Origem a Matrix. Até aqui, tudo entendido como um texto dentro do marco da inspiração, referência e até reverência.
A série firmada pela Dark Productions faz jus ao nome e deixa o espectador no escuro. Às vezes no sentido literal, com uma fotografia de baixa iluminação. A escuridão também é figura de linguagem para o roteiro, que entrega quem são os personagens ou o que os motiva a conta-gotas. Estabelece o mínimo para a compreensão do espectador, como “o capitão bebe muito” ou “o casal francês está com dificuldades no relacionamento”, enquanto oferece um passeio de estranhezas e incertezas.
Inserções rápidas na edição, comportamentos insólitos e símbolos inexplicados sustentam o interesse na série, já que a empatia com os personagens raramente vem a primeiro plano. Até o desenvolvimento das cenas é ambíguo, com enquadramentos oblíquos e trilha sonora atonal, forçando a manutenção do suspense. Ao final dessa primeira temporada composta de oito episódios de cerca de uma hora, é explicado que trata-se de uma simulação e que os passageiros estão presos em um ciclo.
A história de ‘Black Silence’
Se 1899 é uma produção de milhões de dólares, Black Silence é de alguns milhares de reais. A obra foi bem sucedida em uma campanha de financiamento coletivo em 2016. Arrecadou R$ 16,6 mil por meio do apoio de mais de 500 pessoas. A obra rendeu a Cagnin o Troféu Angelo Agostini na categoria melhor desenhista. A artista faz um uso elegante de retículas e efeito granulado em ilustrações em preto e branco. A isso se soma uma disposição surpreendente de quadros e enquadramentos a cada página.
Em uma centena de páginas, Black Silence conta a história de cinco astronautas de diferentes origens em uma missão para avaliar se um planeta pode ser colonizado. Quem encabeça a missão é a rígida militar Neesrin Ubuntu, que tira o cientista Lucas Ferraro da prisão para se juntar ao time.
Os exploradores se deparam com uma misteriosa pirâmide negra. Com o passar dos dias, os membros do grupo são possuídos por algo ou alguma coisa misteriosa, que conduz a mortes violentas dentro da nave. A história deixa em aberto uma explicação concreta para isso.
Antes dos atos extremos, os personagens exibem a forma de pirâmide na pupila. Esse é um elemento visual comum da série e do quadrinho. Cada episódio de 1899 começa com um personagem deitado e a pirâmide nos olhos – uma questão mais estilística, inconsequente em termos de trama.
Em sua acusação, postada em 12 tuítes na madrugada de domingo, 20, a autora lista entre as similaridades a escrita em códigos e “detalhes sutis da trama, como dramas pessoais dos personagens, incluindo as mortes misteriosas”. Realmente, esses são elementos comuns, mas é suficiente para cravar que é uma cópia? O jogo Return of the Obra Dinn, de 2018, também tem mortes misteriosas de uma tripulação e ainda fala de um navio desaparecido.
Davi contra Golias
Imersa no viés de confirmação e atiçada pela lógica de Davi contra Golias, parcela significativa dos usuários está convicta que sim, é plágio. Mais de 90 mil pessoas compartilharam a publicação da autora até a manhã desta terça-feira, 22, e o caso obteve ampla repercussão também na mídia tradicional. Cagnin pediu ajuda “com a coleta de similaridades” e foi atendida.
Outra parcela, igualmente vocal, defende os produtores da série, apontando que Cagnin visa se promover. Os autores da série da Netflix se manifestaram, negando a acusação. “Até ontem nem sabíamos da existência dessa graphic novel”, afirmou Jantje Friese em uma postagem no Instagram. “É claro que isso deve ser um esquema para vender mais de suas histórias em quadrinhos”, diz o texto.
Com o arquivo PDF disponibilizado gratuitamente em inglês e português, Black Silence chegou a ser apresentado em painéis na Feira do livro de Gotemburgo (Bokmässan), na Suécia, em 2017. Os escritores brasileiros Cristino Wapichana e João Paulo Cuenca foram outros que participaram dessa edição do evento. Segundo Cagnin, o fato de ela ter distribuído sua obra pode ter facilitado o acesso dos produtores da Netflix.
Qualificar 1899 como “simplesmente idêntica”, conforme o termo que Cagnin usou, a Black Silence é, no mínimo, um exagero. A própria autora ponderou que a série teria diluído as referências. “A essência do que eu criei está lá”, diz.
Na tarde de segunda, 21, Mary voltou a postar que “o caso já está sendo tratado legalmente”. Caso um processo realmente seja montado, a análise de se é plágio ou não vai se dar nos órgãos competentes, que nada tem a ver com memes, tuítes e retuítes.
*João Varella é jornalista, editor, fundador da editora Lote 42 e da Banca Tatuí e idealizador da Feira Miolo(s)
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