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‘A novela deve falar com a sociedade’, diz autor de remake de ‘Renascer’ com mulher trans e pastor

Bruno Luperi, autor da nova versão da história criada por Benedito Ruy Barbosa, seu avô, quer avançar em debates como transfobia, religião e o cultivo responsável da terra. Estreia é nesta segunda-feira, 22

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Foto do author Danilo Casaletti
Atualização:

Na Páscoa de 1993, a novela Renascer, de Benedito Ruy Barbosa, estava havia pouco de um mês no ar. O autor Bruno Luperi, com cinco anos à época, ao ganhar seu ovo de chocolate, correu para o quarto na companhia do irmão. Juntos, subiram na cama e começaram a pisar no doce. Se o chocolate vinha do cacau, por que não o pisar, tal como seu avô estava ensinando na novela de maior sucesso daquele ano, o que se fazia com o fruto?

Nesta segunda-feira, 22, uma nova versão de Renascer, agora escrita por Luperi, estreia na TV Globo em substituição a Terra e Paixão, com direção artística de Gustavo Fernández. Será a segunda adaptação do autor para uma obra de Benedito. A primeira foi Pantanal, que voltou às telas em 2022. Um sucesso como há tempos não se via no horário das nove.

Maria Santa (Duda Santos), a Santinha, dança pela primeira vez no cortejo do Bumba Meu Boi, onde conhece José Inocêncio (Humberto Carrão/Marcos Palmeira) Foto: Fabio Rocha/TVGlobo

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Para além da lembrança da travessura de menino, está na memória afetiva de Luperi o avô – Benedito está aposentado, aos 92 anos – rindo e chorando com os personagens da história e do ator Marcos Palmeira na sala da casa da família. Palmeira, que na primeira versão fez o papel de João Pedro, agora dará vida a José Inocêncio, o coronelzinho que se torna o grande produtor de cacau no sul da Bahia.

“Às vezes, também me pego rindo, chorando ou conversando com os personagens. E eles respondem”, confessa Luperi ao Estadão. Artista visual e ex-diretor de arte, o agora consagrado autor de telenovelas – sua estreia foi em Velho Chico (2016), sob a supervisão de Benedito – sabe que ao repetir os gestos do avô está indo ao encontro de uma vocação.

Não sei o quanto eu escondi de mim que eu também era um contador de histórias

Bruno Luperi

No entanto, ele achava que a missão de adaptar uma obra de Benedito pararia em Pantanal. “Mas a Globo fez o convite para Renascer. Abriu a garrafa do cramulhão”, brinca, sobre uma das histórias criadas pelo avô, presente na trama.

A tarefa de adaptar uma produção exitosa não é fácil. Enquanto Pantanal estava picotada pelo YouTube, Renascer, além de habitar a memória do público que acompanhou a primeira versão, está disponível completa no Globoplay, em boa qualidade – é a nona novela de arquivo mais vista na plataforma. As comparações serão inevitáveis. Ou alguém duvida que noveleiros assistirão às duas versões simultaneamente?

Além de se debruçar sobre os capítulos originais, Luperi assistiu a Renascer inteira, diferentemente do que fez em Pantanal, quando se deteve em acessar os textos. “Pantanal ainda tem uma lógica um pouco feudal. Cada um com sua propriedade. Não há uma estrada, uma vila, uma esquina. Então, a estrutura central dela foi muito mais próxima à original”, diz.

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Nesse sentido, a nova versão de Renascer careceu de maiores adaptações. A primeira fase do remake se iniciará nos anos 1990, justamente quando a praga vassoura-de-bruxa começa a afetar as plantações de cacau, problema que o José Inocêncio da versão original só lidaria depois de estar estabelecido.

O autor Bruno Luperi recebeu a missão de adaptar 'Renascer' Foto: Globo/Manoella Mello

Para enfrentar esse desafio, o personagem, na primeira fase a cargo de Humberto Carrão, será um cara à frente do seu tempo, ligado no que na época se chamava de ecologia, preocupado com o manejo da plantação e com a preservação do solo. Tudo para que ele possa prosperar e se tornar o coronelzinho da região.

Para o autor, o trabalho de adaptar uma obra tão consagrada se assemelha ao de um cirurgião. É preciso deixar cicatriz o menos grosseria possível, mas com grande impacto no feito.

A novela foi totalmente alterada para permanecer igual. Meu ‘contrato’ com o público é contar a história do José Inocêncio que, na finitude de sua vida, estará em conflito com seus filhos e irá querer se conectar com eles para entender qual o verdadeiro legado que ele deixará depois de uma vida de sacrifícios

Bruno Luperi

Sai o padre, entra o pastor

O ator Marcos Palmeira como José Inocêncio na nova versão de 'Renascer' Foto: Fabio Rocha/TVGlobo

Não apenas a história do cacau e as boas práticas de cultivo da terra se modificaram nos últimos 30 anos. A sociedade como um todo passou por profundas mudanças econômicas e sociais. Renascer não será anacrônica, perdida nos confins do mundo, como anunciava a música da abertura da primeira versão, que será substituída por Lua Soberana nas vozes das cantoras Luedji Luna e Xênia França.

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Luperi dá um exemplo bem claro. Ele foi até onde tudo se passou na primeira versão. Rodou por dois mil quilômetros na região. Visitou a fazenda que serviu de locação externa – para essa versão, por questões de custos e logísticas, quase tudo será reproduzido nos Estúdios Globo - e a Vila do Braço, que abrigava a casa da cafetina Jacutinga, papel que lá atrás foi de Fernanda Montenegro e que agora estará nas mãos de Juliana Paes.

“A vila está quase abandonada. Muitos trabalhadores rurais foram para a cidade buscar trabalhos mais dinâmicos, atuar em outras áreas, fazer entregas, dirigir carros de aplicativos”, conta.

Benedito, autor de uma assinatura muito forte, trazia para suas histórias um universo muito próprio. E criava personagens exemplarmente humanos e brasileiros. Em Renascer, ele tocou na crendice popular ao falar no cramulhão dentro de uma garrafa. Mexeu em dogmas da igreja católico ao confrontar um padre conservador com um colega de formação mais revolucionário.

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Luperi aproveitará os personagens para tocar em assuntos como diversidade e intolerância religiosa. O Padre Santo dos tempos atuais começará conservador, mas afrouxará suas convicções ao passar do tempo. Já Lívio representará os cristãos de maneira mais ampla. Será um pastor. Haverá ainda um mulçumano (Rachid) e uma candomblecista (Inácia).

“Vamos falar menos dos dogmas, daquilo do que nos separa, e mais sobre o que nos une. Criar pontes para com todos”, adianta Luperi.

Outra personagem que causou grande impacto em 1993 foi a Buba, na época interpretada pela atriz Maria Luísa Mendonça. Para Benedito, ela era uma pessoa hermafrodita, o que atualmente se classifica como intersexual.

Em 2024, Buba será uma mulher transexual, interpretada pela atriz Gabriela Medeiros. O que causará, de certo, menos impacto, não na história – ela se relaciona com um dos filhos de José Inocêncio, e há um tabu em torno disso – mas talvez em questão da aceitação do público, já mais habituado com discussões de gênero.

A novela não pode deixar de falar com a sociedade. Mesmo sendo um remake, ela tem que trazer temas do nosso tempo, como o patriarcado, do coronelismo. A Buba ampliará ainda mais o debate da transfobia

Bruno Luperi

Para o autor, a Bahia continua sendo o cenário ideal para falar sobre essa gama de temas. “A Bahia forja o brasileiro que sabe lidar tão bem com o diferente, que sabe ser feliz. Tudo isso é muito bonito”, diz o autor.

Luperi acredita já ter honrado o avô em vida quando foi bem sucedido ao adaptar Pantanal – e, no ápice de uma estafa que um autor de novela é capaz de sentir – jurou que nunca mais faria algo parecido. Renascer, nesse sentido, será um passo a mais na relação de confiança que Luperi travou com Benedito: o de levar a obra do veterano autor a andar pelo tempo.

Se depender de Luperi, seu próximo trabalho será tirar das laudas que já começou a escrever a trama de O Arroz de Palma, inspirada no romance de Francisco Azevedo. “É uma história que eu quero muito contar. Ela está guardada no oratório”, diz.

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