Quando a televisão chegou ao Brasil em 1950, pelas mãos do empresário Assis Chateaubriand, muita gente temia que ela fosse acabar com as salas de cinema. Não aconteceu. Os profetas do fim do mundo fizeram previsão parecida quando as plataformas de streaming surgiram na década de 2010. A televisão, no entanto, segue incólume em seu lugar de entretenimento “gratuito”. E um dos motivos para ela ainda ser sucesso entre os brasileiros pode ser um dos maiores produtos nacionais: a telenovela.
A ideia é defendida por muitas pessoas, Rosane Svartman entre elas. A autora do recente sucesso da Globo, Vai Na Fé, escreve sobre isso em seu livro Telenovela e o Futuro da Televisão Brasileira, lançado no primeiro semestre deste ano pela editora Cobogó. “O futuro da telenovela está nas mãos do telespectador e o futuro da televisão brasileira está nas mãos da telenovela”, escreve no último capítulo.
Dividido em cinco partes, o livro discute o processo de construção de uma novela, a relação do público com ela, desde os primeiros anos de exibição até os nossos dias. Também leva em conta a convergência das mídias e deixa claro que a telenovela é um produto, que, para além das relações sociais, inclui relações comerciais.
Formato em transformação
Para explicar a relação entre o futuro da TV com a telenovela, Rosane começa falando sobre como estas produções estão entrelaçadas com a cultura brasileira. O Brasil faz novela desde a década de 1950 e se tornou um exportador do produto. Ao mesmo tempo em que a sociedade brasileira evolui e suas questões socioeconômicas são colocadas na televisão, o próprio formato se transforma.
A autora, que também assina novelas como Bom Sucesso (2019) e Totalmente Demais (2015) lembra de como o primeiro beijo em Sua Vida Me Pertence (primeira novela da TV, de 1951) causou grande repercussão na época em que foi exibido. Ao mesmo tempo, ela comenta o fato de que atualmente, beijos são extremamente comuns e, a depender do horário em que a novela esteja sendo exibida, cenas que sugerem sexo são usadas como recurso dramatúrgico sem que causem tanto alvoroço.
“A novela é resiliente, ela se adapta, eu acho que, no futuro, ela não será como é hoje, da mesma forma que não é mesma que que estava no ar há 10 ou 20 anos”, comenta. “Veja Pantanal, a nova versão (exibida em, 2022) foi maravilhosa, mas teve uma atualização em todos os pontos de vista (em relação à exibida em 1990)”, continua.
Rosane defende que o sucesso do formato no Brasil, que sobrevive por mais de 70 anos, está relacionado com a evolução da sociedade. Em um ponto de seu livro, explicando o processo de criação, ela fala sobre o “dom” que autores têm de antecipar tendências. “A gente fica de olho, observa dados como o do censo”, diz. “Por exemplo o fato de que menos mulheres querem ser mães atualmente, em alguma medida Lumiar (personagem de Carolina Dieckman em Vai na Fé) representou essa parcela da população”, explica.
Rosane também explica que o fato de uma novela ser obra aberta, diferentemente de seriados, minisséries e filmes, faz com que o retorno da audiência tenha papel importante no desenvolvimento da escrita. Segundo a autora, são feitas pesquisas com pessoas que veem a novela com frequência e um outro grupo que vê esporadicamente. O objetivo desses levantamentos é ver o que está funcionando e o que pode melhorar, tanto para conquistar o espectador esporádico quanto para evitar o abandono do assíduo.
Essas pesquisas são importantes também porque, apesar de ser um produto voltado para o entretenimento, novela é também um modelo de negócio que precisa de um alto investimento e justificar sua existência financeiramente. Baixas audiências podem levar executivos de canais a encurtar uma produção ou fazê-la passar por uma consultoria e ser acompanhada por um outro autor chamado para “salvá-la”.
Novos tempos
Nesse ponto é que a autora explica que as novas produções feitas exclusivamente para o streaming estão testando uma nova forma de olhar para a recepção. “Estamos vendo no momento várias experiências, seja de dividir em duas temporadas (como Todas as Flores) com uma pesquisa no meio, formas de publicação diferentes, seja de dez em dez capítulos, uma vez por semana”, conta.
Este é um dos aspectos que mostra que, mesmo com a mudança de comportamento da audiência, ela continua sendo essencial para que uma emissora, produtora ou afim, pense quais caminhos serão usados para garantir que uma novela tenha sucesso e renda. Afinal de contas, este produto está historicamente ligado à publicidade, seja na grade da programação linear, nos intervalos comerciais, seja inserido nas narrativas como merchan.
“É preciso dizer que, pelo menos no Brasil, o simulcast está crescendo bastante, que é quando as pessoas veem o fluxo contínuo de televisão online”, conta. Isso significa que muitas pessoas estão usando aplicativos de serviços de streaming como o Globoplay para assistir à televisão ao vivo. “O que estamos vendo mais uma vez é a convergência das coisas.”
Em 2021, um estudo do IBGE revelou que quase metade das casas brasileiras assistia às séries e programas favoritos em uma Smart TV. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), entre 2019 e 2021, o número de lares com TV no Brasil subiu de 68,4 milhões para 69,6 milhões. Ainda de acordo com a pesquisa, 96,2% das moradias urbanas e 90,8% das rurais tem televisor no país.
Televisão sem fim
Isso ajuda a defender a ideia de que a televisão, ao contrário do que previram aqueles tais profetas do fim do mundo, não vai acabar assim tão fácil. Nem como dispositivo, aparelho eletrônico que, nem como conteúdo, o que autora chama de “pacto com o espectador”.
“Se a gente definir a televisão dessa forma mais ampla, ela está assistindo à sociedade, e eu acho que a televisão e os executivos, de alguma forma, vão adequar esse conteúdo à rotina dessa sociedade”, pontua. “A rotina está mudando, mudou muito com a pandemia, mas mesmo depois da pandemia, a gente continua com audiências massivas tanto dentro do fluxo contínuo da TV quanto no simulcast”, diz Rosane.
Para ela, a única coisa que pode levar a mais uma transformação grande na TV é a mudança da rotina dos telespectadores. Ou seja, a televisão como a vemos é um espelho da sociedade que tenta olhar para o futuro mesmo que falando no presente. “Enquanto a gente tiver rotina, e acho que vamos ter durante muito tempo, a televisão estará olhando para a gente e se adequando, inclusive esse conteúdo. Basta observar o que o Walcyr (Carrasco) está conseguindo na novela das 21h (Terra e Paixão), que voltou a dar 30 (pontos de audiência) com uma história original”, pontua.
Uma simples observação mostra essa adequação da TV ao dia a dia dos telespectadores. A novela, que antes começava às 20h, já inicia às 21h30, por exemplo, já contando com o fato de que os telespectadores começaram a chegar em casa mais tarde, principalmente pensando no fluxo das grandes cidades.
“As pessoas ainda estão abertas à rotina de ver no horário, no fluxo contínuo, junto com os textos secundários, com rede social, com tudo que está acontecendo no momento”, diz. “Na minha opinião (a mudança) será na convergência dessas formas de espectatorialidade”, complementa.
A autora enfatiza que não importa a forma como a novela é vista, seja na TV, na grade linear, seja em simulcast, seja no streaming, dividida em temporadas, com capítulos lançados em blocos semanais, diários etc. “Eu olho para esses dados e, mais uma vez, acho que fortalece a tese de que enquanto a novela fizer parte da nossa cultura, enquanto tiver essa conexão com a sociedade, ela permanece”, finaliza.
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