‘A originalidade assusta as pessoas’, diz Miguel Falabella, que lança série sobre música e autismo

Ele trabalha como showrunner de ‘O Som e a Sílaba’, nova produção do Disney+; baseada em musical de Falabella, série sobre uma mulher savant explora temas como a complexidade das relações afetivas para pessoas neuroatípicas

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Foto do author Matheus Mans
Atualização:
Foto: Tiago Queiroz/Estadão
Entrevista comMiguel FalabellaAtor e diretor

Miguel Falabella é alguém que gosta de abraçar a versatilidade. Não só seus créditos profissionais são longuíssimos, respondendo como ator, diretor, escritor, dramaturgo, roteirista e encenador brasileiro, como também não se contenta em contar um só tipo de história: em um só ano, está no elenco do musical Elvis, prepara peça sobre Martinho da Vila e, agora, se lança O Som e a Sílaba, série original do Disney+.

Com estreia nesta quarta, 28, a produção criada e roteirizada por Miguel Falabella é inspirada na peça teatral homônima de sucesso, de 2017. Na história, Sarah Leighton (Alessandra Maestrini) sempre foi tratada como uma menina “diferente”, até o dia em que é diagnosticada como uma criança do espectro autista. Finalmente ela entende quem é.

Com o tempo, ela também descobre as razões pelas quais consegue ouvir e cantar qualquer canção: Sarah é uma savant – termo usado para pessoas que possuem a síndrome de Savant, uma condição rara em que a pessoa tem habilidades extraordinárias relacionadas à memória e criações artísticas.

“Acredito que tem tudo a ver com o momento atual, com a necessidade de desaprender para aprender coisas novas”, resume Falabella, aos 67 anos, em entrevista ao Estadão. A partir da série, Falabella também reflete sobre os desafios desta produção, caminhos da carreira e como vê o mercado de trabalho como um todo – inclusive a falência da originalidade.

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Como surgiu a ideia de ‘O Sonho e a Sílaba’?

A gênese do trabalho começa com Alessandra Maestrini, de quem sou muito amigo e por quem tenho grande admiração. Durante uma gravação, não me lembro exatamente o que era, eu estava ouvindo a soprano coreana Sumi Jo, de quem sou fã, e ela me disse que conseguia cantar aquilo. Nunca imaginei que ela cantasse lírico. Sabia que era uma cantora maravilhosa, popular, fora do comum, mas ela me surpreendeu e me convidou para assistir a uma aula dela com a Mirna Rubim, que também já tinha sido minha professora de canto. Numa dessas aulas vivi uma daquelas situações em que você sente algo no ar que não consegue explicar. Também naquela época, eu estava assistindo a um documentário sobre savants e autistas, e me deparei com uma pesquisa sobre uma menina chinesa que conseguia reproduzir perfeitamente qualquer tonalidade que ouvisse. Ela imitava Alicia Keys, Montserrat Caballé, qualquer cantora, com precisão. Fiquei fascinado por essa habilidade e comecei a pensar em como poderia unir essa paixão pela ópera a essa temática. Foi então que criei a personagem principal de O Sonho e a Sílaba: uma mulher savant, neuroatípica.

É uma inspiração que veio de vários lugares, então?

Acredito que tem tudo a ver com o momento atual, com a necessidade de desaprender para aprender coisas novas. Para mim, foi um processo de aceitação e acolhimento. Foi aí que Julia Balducci, formada em cinema [e que tem síndrome de Asperger], entrou no projeto, trazida pela Maestrini, que fez questão de termos uma assessoria especializada para tratar o tema com responsabilidade. A Júlia trouxe questões sobre sexualidade, solidão, afeto e toque, que foram essenciais para a construção da narrativa. A partir desses questionamentos, fui escrevendo a peça, explorando temas como a complexidade das relações afetivas para pessoas neuroatípicas.

É uma abordagem que não era muito discutida antes.

Exato, e foi muito gratificante ver a peça sendo tão bem recebida. A Disney se interessou pelo tema, e conseguimos adaptar a obra para o formato de série, com as mesmas atrizes da peça pois elas já tinham uma intimidade com os personagens e com a história. A Júlia e a Cininha de Paula assumiram a direção de diferentes episódios, o que trouxe camadas de narrativas diferentes e enriquecedoras para a série.

Miguel Falabella na Oficina Cultural Oswald de Andrade. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

E como foi esse processo de adaptação?

Muito criativo. Tudo fluiu bem, porque a Disney comprou a ideia e achou o tema interessante e relevante para os dias de hoje. Talvez a originalidade da série esteja na combinação da ópera com o estranhamento social que a protagonista vive. Ela busca uma harmonia que só encontra na música, algo muito bonito de se explorar. Ela não escuta a música como nós escutamos. Respeita as pausas, algo que nós, muitas vezes, ignoramos.

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Suas últimas séries, ‘O Coro’ e agora ‘O Som e a Sílaba’, se aproximam muito de um público mais jovem. Como é para você essa comunicação com a juventude?

Eu trabalho com jovens há muito tempo, principalmente graças ao teatro musical. Por exemplo, pessoas de 15, 16 anos me conhecem por causa do teatro, mesmo sem terem assistido aos meus trabalhos na televisão. Isso é algo que me abre um canal muito bacana com essa nova geração. Gosto de formar gente, de estar perto dessa energia jovem. Recentemente, montei uma nova versão de A Partilha com quatro atrizes negras e foi muito interessante ver como cada montagem traz novas camadas e olhares para a obra original.

Gosto de formar gente, de estar perto dessa energia jovem”

Miguel Falabella em cena de 'Sai de Baixo' em 1997 Foto: Daniel Garcial/Estadão

Não pensa em voltar a fazer comédia na TV?

Fiz A Mentira no teatro, no ano passado, que foi um grande sucesso. Fizemos uma turnê pelo Brasil e Portugal.

Mas e uma série como ‘Sai de Baixo’?

Não, isso não. Acho que as coisas mudaram. Hoje em dia, a originalidade assusta as pessoas. Elas querem mais do mesmo, e ser original hoje é um desafio. É preciso alguém muito poderoso para bancar projetos originais. Imagina chegar hoje na mesa de alguém e oferecer um projeto como o de Pé na Cova. Não iria nem entrar na sala do diretor. Tinha um porteiro na Globo que falava que, quando começava a chegar gente esquisita, sabia que era uma produção de Miguel Falabella. Eu sou assim. Amo gente esquisita.

Hoje em dia, a originalidade assusta as pessoas. Elas querem mais do mesmo”

Isso quase não tem mais

Infelizmente, a internet, apesar de democratizar o acesso à informação, também trouxe um lado raso. Porém, isso também tem feito com que as pessoas que buscam entretenimento de qualidade procurem mais o teatro.

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Miguel Falabella na Oficina Cultural Oswald de Andrade Foto: Tiago Queiroz/Estadão

É um ponto positivo no meio do caos

Com certeza. O teatro se beneficia dessa busca por qualidade. Quando as pessoas assistem a algo bem feito, com consistência e humanidade, elas gostam. O problema do humor é quando ele perde essa humanidade e cai no estereótipo. Não consigo assistir a algo assim.

No final isso também ajuda o teatro musical, não? Antes era algo incipiente no Brasil

Hoje, somos o quinto país do mundo em produções de teatro musical. Temos um nome, um respeito. Recentemente, os americanos vieram ver Elvis e ficaram impressionados. Um amigo inglês disse que a produção deveria estar no West End. Estamos atingindo um nível técnico muito alto, o que é maravilhoso.

Podemos dizer, então, que as mudanças na sua carreira nos últimos anos, como a saída da Globo, não te afetaram?

Foram maravilhosas. Uma amiga minha, que é filósofa, estava comigo no dia em que fui demitido, e a reação dela foi positiva. Na verdade, esse foi um novo começo para mim, uma oportunidade de me reinventar e continuar criando.

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