Aguinaldo Silva está oficialmente afastado das telenovelas desde 2018, quando escreveu O Sétimo Guardião, o 16° folhetim de uma carreira de sucesso iniciada em 1984 com Partido Alto. Mesmo assim, ele não vive recolhido, preferindo emitir opiniões que agitam as redes sociais. “Influencers não são atores e não funcionam em novelas”, disse recentemente.
“Remakes não dão certo porque a novela é algo que só existe no momento em que foi criada”, comentou a respeito da intenção da Globo de produzir em 2025 uma nova versão de Vale Tudo (1988), clássico da TV brasileira que Aguinaldo escreveu ao lado de Gilberto Braga e Leonor Bassères.
É justamente esse tom direto que marca a escrita de Meu Passado Me Perdoa: Memórias de uma Vida Novelesca, autobiografia que Aguinaldo Silva começou a rascunhar durante o isolamento da pandemia e que está sendo lançada agora pela editora Todavia. O texto abre com a humilhação sofrida por ele aos 13 anos, quando é eleito Rainha da Primavera pelos colegas da escola, agressão sofrida por ser pobre, feio e efeminado.
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Outros atos homofóbicos vão marcar sua trajetória, mas Aguinaldo os utilizou como material para sua carreira, primeiro como escritor, depois jornalista, até se tornar um dos mais badalados autores de telenovela do Brasil. Não à toa, o livro, com sua narrativa “novelesca”, pode ser lido como se assiste a uma telenovela, cujos personagens da ficção têm origem em sua experiência pessoal.
Aos 81 anos, Aguinaldo continua um grande observador do comportamento humano, um buscador do absurdo. Ela traz seu humor característico e sensibilidade excêntrica para seus personagens, criando narrativas que invertem nossa compreensão dos relacionamentos e demonstrando um interesse permanente nos tipos de intimidade que só podem surgir entre estranhos.
Suas experiências homossexuais são relatadas com a mesma naturalidade com que revela bastidores das novelas, como a escolha do nome da personagem Odete Roitman, vilã de Vale Tudo, ou a forma como Renata Sorrah determinou as características de Nazaré Tedesco em Senhora do Destino (2004), divertida vilã cujas frases ainda inundam os memes das redes sociais.
No livro, Aguinaldo relata ainda bastidores de sua nada elegante demissão na Globo. Na manhã do dia 1° de janeiro de 2020, após uma festa de réveillon de arromba, ele foi acordado pela ligação de um funcionário da emissora informando que, após o final de seu contrato, em fevereiro, não haveria renovação. No livro, Aguinaldo chama de “justiça divina” o fato de entre 2020 e 2021, mesmo demitido, ter visto suas novelas Fina Estampa e Império serem reexibidas na Globo em razão da pandemia de covid-19, que interrompeu as gravações das produções da emissora.
“Foram dois anos de salário sem fazer nada”, disse ele, que recebeu o Estadão em seu confortável apartamento localizado na região de Higienópolis, em São Paulo, onde, em meio a uma decoração luxuosa, mas austera, destacam-se os dois prêmios Emmy Internacional de Melhor Telenovela que recebeu: o primeiro pela supervisão do folhetim português Laços de Sangue e o segundo pela autoria de Império.
No livro, o senhor compara seu trabalho de jornalista com o de autor de telenovelas, dizendo que faz extensas reportagens enquanto finge escrever novelas.
Na verdade, as minhas novelas são sempre grandes reportagens no sentido de que duram muito tempo. São grandes reportagens sobre determinados temas ou pessoas, figuras muito populares, porque as minhas novelas foram sempre baseadas nisso. Nunca fiz novelas situadas no Leblon, isso é o território do Manuel Carlos, que é um autor genial. Mas, assim, considero que são grandes reportagens e são fruto da minha experiência como jornalista.
Gilberto Braga era considerado pela crítica como um Balzac eletrônico, pelo tema de suas novelas. Como o senhor gosta de utilizar o realismo fantástico no seu trabalho, poderíamos dizer que você seria um García Márquez eletrônico?
(rindo) Não ousaria me comparar com ele. Eu realmente tinha essa veia, que me levava para o jornalismo mágico, algo muito engraçado porque era sempre um desafio fazer o público acreditar no que estava vendo. Isso me encantava. Conseguir fazer isso era ótimo. De repente, as pessoas estavam falando do Cadeirudo, personagem de A Indomada que assombrava as mulheres nas noites de lua cheia, como se fosse uma figura real. Assim, o Cadeirudo passava a existir.
Janete Clair (1925-1983), uma das maiores autoras de telenovela brasileira, foi sua maior inspiração?
Sim, porque ela tinha um lado popular que me agrada. Acredito a maior novela de todos os tempos foi Pecado Capital (1975), mas a primeira versão, não o remake de 1998. Entendo uma novela em sua primeira versão - se fizer uma segunda, já é outra novela. Então, para mim, a maior novela de todos os tempos no Brasil é Pecado Capital. Eu me deixei influenciar muito pela imaginação derramada da Janete. Ela não tinha pudor.
Além de não gostar de remakes, o senhor também é contra esticar uma novela, não?
Você está se referindo a Tieta. Sim, o elenco queria que a trama continuasse como uma série. Seria Tieta Parte 2, parecia que ia vingar. Mas o diretor Paulo Ubiratan, com quem desenvolvi muita cumplicidade, era contra. Daí ele disse: “então, dá um jeito”. Tive então a ideia de criar uma enorme tempestade de areia que, no final da novela, cobriu a cidade e matou todos os personagens. Como a novela terminou assim, não podia ter uma continuação.
Odete Roitman, vilã de ‘Vale Tudo’ (1988), é um dos mais icônicos personagens de telenovela. Mas seria possível ter alguém parecido com ela nos dias atuais?
Não pode. Embora vilã, Odete era uma mulher desmedida, com uma linguagem que seria muito ofensiva nos dias de hoje. Não sei como a Globo vai fazer no remake, mas, seja como for, Odete deixará de ser aquela personagem eternizada pela Beatriz Segall. A Odete que conhecemos é aquela mulher da década de 1980, que falava sobre a situação do País naqueles dias. Não daria para falar aquilo nos dias de hoje. A novela é algo que só existe no momento em que foi criada. São vários elementos que se combinam para que a novela dê certo e, em um remake, não vai ser a mesma coisa. Terá um bom texto, bons atores, uma boa direção, uma boa produção, mas faltará aquela magia do original. É sempre assim.
Nos últimos anos, surgiram novos autores de telenovela. Como vê esse movimento?
Acredito que alguns autores foram afastados antes do tempo, pois ainda tinham muito o que dizer, e, ao mesmo tempo, não foi preparada uma nova geração de autores porque é um trabalho muito específico escrever uma novela. Aí a coisa degringolou.
O politicamente correto limitou a liberdade dos autores?
Pelo contrário, precisamos entender que houve uma mudança na linguagem e nos costumes. É possível criar nessa nova realidade sem ficar reclamando de que isso ou aquilo não pode ser feitos. Sempre se pode fazer quando se sabe fazer.
O streaming modificou a forma do público acompanhar as novelas?
Não foi o streaming que mudou o comportamento das pessoas, mas o TikTok. Atualmente, as pessoas estão sendo treinadas a ver coisas de 50 segundos, e não um capítulo de 40 minutos de uma novela. Isso é muito grave porque os trabalhos agora estão cada vez mais superficiais.
O senhor também se posicionou contrário à presença de influencers nas novelas
Li recentemente uma notícia muito estranha, dizendo que o SBT teria contratado 53 influencers para promover a imagem da emissora - no caso, para falar bem. Isso me preocupa porque você fala bem de algo quando merece que falem bem, e não porque você está pagando. Influencers não são atores, não funciona. Uma novela precisa de bons atores que deem credibilidade aos personagens.
Como funciona isso?
A parceria entre diretor, autor e atores é essencial. Quando existe essa harmonia, tudo funciona. Por exemplo, a Nazaré, de Senhora do Destino, eu queria que fosse interpretada pela Suzana Vieira, mas o papel acabou ficando com a Renata Sorrah, que praticamente criou o personagem. Não posso dizer que sou o pai da Nazaré, porque a Renata é a mãe da Nazaré, ela tirou o personagem de dentro dela e acrescentou coisas que me deixavam pasmo, pequenos detalhes que transformaram a personagem em alguém inesquecível.
O Crô, de Fina Estampa, é seu personagem homossexual favorito?
Não, prefiro o Adamastor, vivido por Pedro Paulo Rangel em Pedra Sobre Pedra. Ele era apaixonado pelo Carlão Batista (Paulo Betti) que, claro, era um canalha por se aproveitar dele e nunca lhe deu a menor chance. Quando Carlão morre, estão os dois, a certa altura, sozinhos no velório e a cigana Vida (Luiza Tomé) diz assim: “eu amava este homem”. Adamastor rebate: “você sabe o que é o amor?”. Aí faz um discurso sobre o amor que ele nunca teve coragem de declarar. Era uma cena fantástica.
É seu preferido, então?
Na verdade, o personagem que gosto mais, por várias razões, é Cláudio Bolgari, vivido por José Mayer em Império. É um homem casado, com filhos, mas secretamente é gay e se apaixona por um belo rapaz, vivido por Klebber Toledo. Mayer confrontou sua fama de galã, de machão, para viver esse personagem tão complexo e o fez lindamente.
Meu Passado me Perdoa
- Autor: Aguinaldo Silva
- Editora: Todavia; 402 páginas, R$ 89,90 (e-book R$ 69,90)
- Lançamento em São Paulo: 16/7, às 19h, na Livraria da Vila Shopping Pátio Higienópolis (Av. Higienópolis, 618)
- Lançamento no Rio de Janeiro: 18/7, às 19h, na Livraria da Travessa Leblon (Av. Afrânio de Melo Franco, 290)
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