O ator e bailarino Amaury Lorenzo leva as mãos na altura do rosto, como se segurasse um bebê e diz, olhando para elas: “Eu sempre quis trazer vida para o mundo, ser obstetra”. O mineiro estudioso, que ganhou fama na TV ao interpretar o capataz Ramiro em Terra e Paixão (2023/2024), na juventude, foi aprovado para o curso de medicina na UFRJ. Também para jornalismo na UERJ. Matriculou-se mesmo em artes cênicas na UNIRIO.
Prestes a protagonizar sua primeira novela, Volta Por Cima, a nova das 7 da noite da TV Globo, Lorenzo, de 39 anos, segue, mesmo na campa da imaginação, a mesma missão do médico que um dia desejou ser. Ao longo de quase 30 anos de carreira, moldada sobretudo no teatro, onde já fez 30 peças, colocou inúmeras vidas no mundo.
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Desta vez, irá parir Chico, um morador do subúrbio carioca, sujeito acomodado que trabalha na banca de jornal do pai, seu Moreira, personagem de Tonico Pereira. Puro, Chico não tem coragem de magoar quem quer que seja. Namora Madá, interpretada por Jéssica Ellen, mas vive uma relação com Roxelle, papel de Isadora Cruz.
“Minha mãe parou de lamentar e jogar na minha cara recentemente (o fato de não ter seguido na medicina)”, diz Lorenzo ao Estadão, em tom de brincadeira. Filho de uma dona de casa alagoana e de um caminhoneiro mineiro, o ator batalhou pela profissão. Durante 18 anos, atuou como professor de teatro. Optou por dedicar-se ao trabalho com comunidades vulneráveis no Rio de Janeiro.
Venho do teatro. Tem mês que você passa fome. No outro, você faz um dinheiro, mas sua mãe, que não tem aposentadoria, precisa de remédio. Aí, cortam sua luz
Por isso, Chico tem importância fundamental para Lorenzo. Mais do que apenas colocar a cara na TV, como muitos de seus colegas desejam - o veículo continua poderoso para a profissão - , o ator demonstra o mesmo cuidado que tem no teatro para com o personagem criado pela autora Claudia Souto. Quer, como diz, “encontrar o coração dele”, assim como fez com Ramiro recentemente - e a isso se deveu o enorme sucesso que fez. Envolve-se a ponto de justificar o deslize do sujeito ter duas mulheres.
“Chico não é malandrão, lamento. É um cara completamente apaixonado. É noivo da Madá, com quem namora desde a adolescência. Mas, aparece o furacão Roxelle. Sei que é um assunto complicado. Como ele pode ser gente boa se é noivo e trai? Ele simplesmente ama demais”, justifica o ator. “Chico é um homem brasileiro. Pode escrever isso aí”, completa.
Na verdade, na comicidade de Chico habita algo muito comum ao ser humano: aquele lugar no qual nem tudo é conversado. Ele vai se casar com Madá por conta de uma promessa que fez à mãe antes dela morrer. “São escolhas que ele não fez. A vida é um pouco assim. Eu aguentei 27 anos de dificuldades no teatro para, agora, poder pagar meu aluguel e um plano de saúde para os pais com tranquilidade. Colho as consequências. Chico irá colher as dele”, opina.
Há outra responsabilidade para Lorenzo. Volta Por Cima é uma novela cujo protagonismo será de atores pretos. Além dele, Jéssica Ellen e Isadora Cruz, Fabrício Boliveira também forma o quarteto principal da novela. O elenco ainda tem MV Bill, Bia Santana, Valdinéia Soriano, Aílton Graça, entre outros profissionais pretos. Completam o time nomes como Betty Faria, Drica Moraes, Juliano Cazarré, Rodrigo Fagundes e Fábio Lago.
Para o ator, é importante que um País como o Brasil, no qual mais de 50% da população é preta, o povo se identifique em histórias contadas na TV, teatro ou cinema. Mais fundamental ainda é que sejam histórias do cotidiano, assim como a vida é.
Lorenzo reconhece que o espaço aberto em Volta Por Cima - a novela das nove, Mania de Você, também tem uma protagonista preta -, é poderoso. No entanto, para o ator, e por isso mesmo, cabe uma ponderação no debate que deve se iniciar a partir dessa inciativa.
“O público precisa de um tempo de adaptação. A vida toda ele foi acostumado a ver pessoas brancas ocupando o espaço na TV. Quando a ótica muda, faço uma pergunta: se der errado, o público estará preparado para pegar na nossa mão e dizer ‘está tudo bem, só não estamos habituados a ver vocês’? Tudo precisa de um tempo de assentamento”, diz.
Por ora, Lorenzo comemora conquistas quase imperceptíveis dentro desse tema. Chico, seu personagem, terá um pai e casa na trama. “Tem namorada. Até amante. Tudo vai se tornando natural, percebe?”, diz.
“Acho que a casa (a TV Globo) gosta de mim. Eu só queria que todos os artistas tivessem o mesmo investimento que estou tendo. Até pouco tempo atrás, éramos chamados de vagabundos. É muito doloroso, quando se trata de seu ofício de vida”
Sem deitar na fama
Logo após viver Ramiro em Terra e Paixão, em papo com o Estadão, Lorenzo afirmou que não iria se perder na vaidade que a TV traz. Conseguiu? “Não é difícil, é fácil. É fácil!”, diz, com característico sotaque mineiro. ”A fama não dialoga com meu ofício. Hoje (no dia em que conversou com o Estadão), tenho 16 cenas para gravar. Estou com meus pés fincados no chão e com um compromisso com o Chico, meu novo personagem”, afirma.
Lorenzo diz que os amigos já sugeriram que ele contrate um personal stylist (profissional que poderia ajudá-lo a se expressar melhor por meio da moda). “Para que? Não é bom ser assim simples?”, diz, em referência a como estava vestido. O ator usava camiseta básica, calça e chinelos na entrevista ao Estadão.
Ele segue no teatro. Na peça A Luta, adaptação de Ivan Jaf para a terceira parte do romance Os Sertões, de Euclides da Cunha (1866-1909), Lorenzo se apresenta sozinho, com figurino simples, sem cenário. A direção é de Rose Abdallah. No palco, o ator narra sozinho a Guerra de Canudos (1896-1897).
Lorenzo sabe que muitos vão ao teatro para ver o cara da TV. As sessões têm lotado pelo Brasil. Ele, então, usa de uma estratégia: no final do espetáculo, permanece o que tempo que for preciso para conversar com quem o espera. “Emocionadas, as pessoas dizem: ‘vim te ver, acabei entendendo um pouco da história do nosso País, sobre quem nós somos”, conta.
“Faço arte e vivo dela para transformar as pessoas. Faço teatro por excelência. O que é a fama perto disso tudo?”, questiona, para encerrar.
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