O único pedido de Betty Faria antes de conversar com a reportagem do Estadão em uma sala dos Estúdios Globo, no Rio de Janeiro, é um copo de café. “Com adoçante, por favor. Para manter a forma”, diz. Betty continua uma linda mulher. Inteligente, articulada e, principalmente, livre.
“Bebo café o dia todo. Minha dentista diz: ‘Dona Betty, faz um bochecho com água depois de beber café ou o clareamento dos dentes não faz efeito’. Que graça tem? Bom é ficar com o gostinho na boca”, diz a atriz, como se já saboreasse a bebida antes mesmo de dar o primeiro gole.
Aos 83 anos, Betty Faria não quer se poupar de sentir nada. Continua a mergulhar fundo em suas personagens, tal como aprendeu com os mestres do teatro, entre eles, Zé Celso Martinez Corrêa e Eugênio Kusnet, no início dos anos 1960. E a compreendê-las. Na nova novela das sete da TV Globo, Volta Por Cima, de Claudia Souto, Betty será Belisa, a mais velha dos Góis de Macedo. Socialite falida, a personagem tenta manter as aparências ao lado dos irmãos Joyce (Drica Moraes) e Gigi (Rodrigo Fagundes).
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Os três torraram a fortuna da família e, agora, contam apenas com a benevolência do copeiro Sebastian (Fábio Lago). Diante da penúria, Belisa, ex-dama da sociedade carioca, se lança como influenciadora digital - basta dar uma volta pelo fluxo das redes sociais para perceber que a história é totalmente verossímil. No elenco, também estão nomes como Amaury Lorenzo, Jéssica Ellen e Fabrício Boliveira.
“Ela não gosta que digam que está falida. Ela diz que está ‘financeira prejudicada”. Adoro isso!”, diz a atriz, ao ressaltar que Belisa, no meio da tragédia, encontrará o humor. Princípio que a atriz diz seguir também: “Eu coloco humor nos meus personagens porque eu enxergo a vida assim. Eu não me levo muito a sério!”.
Na outra face da comédia, está o drama de sua personagem no filme Justa, que rodou em 2023 em Portugal com a diretora Teresa Villaverde. O longa vai contar a história de incêndios florestais que devastaram a aldeia do xisto de Álvaro, na região de Oleiros. A personagem de Betty é uma das sobreviventes. Perdeu o marido e ficou cega. “Meio banal dizer que foi um desafio. Mas, foi”, diz a atriz que, no cinema, tem participações marcantes em Bye, Bye, Brasil (1980) e Romance da Empregada (1988).
Na conversa, Betty, que revelou estar incomodada com o que ela chama de “censura das palavras”, lembra de outros personagens marcantes na TV, como Lazinha Chave de Cadeia de O Espigão (1974) e Tieta (1989), e chama de “ousadia” a opção pelo protagonismo de atores pretos em Volta Por Cima.
Recentemente, a senhora disse que é “encantada pelo presente”. Estar em cena faz a senhora estar conectada com ele?
Sou muito encantada pelo presente, mas também muito apavorada por ele. Minha família ficou atemorizada quando soube que eu iria dar uma entrevista. Estou proibida de falar sobre política. Eu disse que iria falar sobre a minha personagem, mas da vida também, não é? E como não falar da vida e não dizer que estamos vivendo uma censura louca, uma censura das palavras? Você não pode falar nada que ‘apanha’.
Isso incomoda, certamente...
Claro! Uma pessoa que trabalha com os meios de comunicação, assim como eu, tem a obrigação de comunicar esse tipo de situação.
De que maneira a senhora se sente censurada?
Me chame de você... Politicamente. Não posso dar minhas opiniões porque as pessoas ‘batem’ em mim... Não posso (falar).
Ok. Então, vamos falar sobre a novela...
Vamos. Mas, vivemos uma ditadura. E eu vivi a ditadura (militar, 1964-1985) seriamente, ativamente. E a censura. E, antes de termos nossas obras censuradas, já éramos perseguidos politicamente. Atualmente, vivemos a ditadura da hipocrisia e das palavras. Não posso dar minha opinião. Que loucura!
Em que sentido, Betty?
Em todos! No sentido político, no Brasil e no mundo. Mas estou muito feliz de fazer uma novela na TV Globo com (protagonistas) pretos. É uma proposta nova. 80% do elenco é de atores pretos. Isso em um mundo de extrema direita, nazifascista, que não gosta de preto, não gosta de velho, não gosta de gay, não gosta de judeu... Por isso, acho muito interessante o que a Globo está fazendo. Pronto, falei sobre política (risos).
Seus personagens sempre foram políticos, não?
Ou eu, com meu tipo de proposta, com a minha cabeça, talvez ajude nessa consciência do ser político (dos personagens).
Produzir uma novela com protagonismo preto é um projeto ousado da Globo. Eles (os pretos) mereciam. Precisavam. Há muito tempo. É a hora e a vez deles.
Isso guiou você na escolha do que fazer na TV ou cinema?
Não, nunca. Eles aparecem. Pois, se estou fazendo essa novela, com protagonistas pretos, em um mundo que está sendo invadido pela extrema direita... O Trump está aí, brigando com a Kamala. Eu acordo em Portugal, olho pela janela do hotel, e vejo dois outdoors de políticos de extrema direita. A Hungria invadida. Adoradores do nazismo sendo encontrados aqui no Brasil. Produzir uma novela com protagonismo preto é um projeto ousado da Globo. Eles (os pretos) mereciam. Precisavam. Há muito tempo. É a hora e a vez deles.
A Belisa, sua personagem em Volta Por Cima, é uma socialite falida. É o que sabemos até o momento. O que mais pode falar sobre ela?
Ela não gosta que digam que está falida. Ela diz que está ‘financeira prejudicada”. Adoro isso! Ela é chique, bem nascida, de bom gosto, mas tem mistérios que ainda não sei qual são. Dos três irmãos, ela é a que tem uma visão positiva da vida. E quem tem uma visão positiva diante de uma falência e de uma tragédia tem humor.
Tem muito de comédia, então?
Eu vejo as coisas com o olhar da comédia. Sempre fui louca pelo neorrealismo italiano. Decidi ser atriz assistindo a Estrada da Vida, de Fellini. A Gelsomina da (atriz) Giulietta Masina era patética. Trágica, mas muito engraçada. A vida é assim. Se você olhar para um velório, vai ver situações engraçadíssimas também. A vida é cheia de dramas e comédias. Vejo sempre por esse prisma.
E leva esse prisma para seus personagens...
Para minha vida! Por isso, sobrevivi. Certa vez, meu filho me disse: Mãe, o que te salva é teu humor. Eu coloco humor nos meus personagens porque eu enxergo a vida assim. Eu não me levo muito a sério!
A Lazinha Chave de Cadeia, da novela O Espigão, era uma bandida, mas com muito humor...
Adorava a Lazinha.
Uma pessoa à margem da sociedade. Você interpretou algumas desse tipo ao longo da carreira.
Aguinaldo (Silva) me deu boas bandidas, como na minissérie Os Bandidos da Falange (1983). Sempre tive muito apreço, carinho e simpatia por essas pessoas...
Os herdeiros são vítimas! Não lidam com a realidade. Até que ela vem e os estapeiam
Porque a Lazinha, de certa forma, era uma vítima. Órfã, reclamava a falta de carinho de pai e mãe...
E a Belissa também é! Nasceu herdeira. Os herdeiros são vítimas. Não lidam com a realidade. Até que ela vem e os estapeiam.
Volta Por Cima terá muito atores jovens no elenco. Como é seu convívio com esses colegas?
Sou afetuosa. Eu abraço a todos. Sou rebelde. Sou contra qualquer tipo de preconceito. É importante que o sindicato (dos Atores) exija o registro, cumpra sua função. Paralelo a isso, não podemos barrar o sonho de uma pessoa que pode ter um talento e quer desenvolvê-lo. Cito o exemplo de Grazi Massafera, ex-BBB, que foi estudar e se descobriu uma boa atriz, com talento. Isso é possível. A longo prazo, quem for (bom), fica. O tempo é mágico. E nossa profissão também, porque lida com verdade, com sentimento, mas com conhecimento também. É uma seleção natural.
Quando você começou, recebeu esse mesmo acolhimento?
Eu tive muita dificuldade. Porque eu comecei pelo show. Minha formação é de bailarina clássica. Fui fazer testes para programas e shows de TV e musicais no teatro. Queria ser uma atriz que cantava e dançava. Diziam: ‘Betty? Aquela que dança?’. Eu vivi isso (o preconceito contra os iniciantes). Eu estudava muito. Procurava por todos os cursos. Enquanto estudava, trabalhava dançando na TV e em boates. Fiz muito shows em boates. Eram maravilhosos. Até conseguir chegar no Teatro Jovem, onde tive um encontro com o José Wilker (1944-2014). Consegui fazer uma peça e, depois da apresentação, estudávamos até de madrugada. Fui para Teatro Oficina, quando o Zé Celso (1937-2023) o trouxe para o Rio de Janeiro. Convivi com o Eugênio Kusnet (1898-1975), um mestre. Eles gostavam de mim, me davam aulas. Zé Celso me levou fazer a peça Pequenos Burgueses (1963).
De lá para cá, a tecnologia da TV avançou, o gênero telenovela passou por transformações importantes. Atualmente, as cenas são mais curtas. Como é atuar na TV nos dias de hoje?
É bom! As novelas são ótimas! Antes da pandemia, fiz A Força do Querer. Gloria Perez me deu uma personagem muito boa Aliás, uma sorte minha: sempre tive bons personagens. De Gloria, Aguinaldo , Gilberto (Braga)...
Manoel Carlos?
Manoel não gosta de mim. Eu fui chata com ele em Baila Comigo (1981). Extremamente chata. Ele deve ter me detestado. Nunca mais me chamou. Ele não desenvolvia a história daquela professora de dança (Joana Lobato). Ela chegava no bar da academia e dizia: “Me dá um suco de caju?”. Eu ficava puta com aquilo! Dançava muito. Tinha que ensaiar bastante. Mas, na hora de trabalhar como atriz, o Manoel não me dava cenas. Ligava para reclamar com ele. Foi uma lição. Nunca mais liguei para autor nenhum. Tenho medo de ser chata.
Recentemente, a Fernanda Montenegro e a Susana Vieira declaram que já fizeram tudo o que tinham para fazer em novelas. Fernanda disse textualmente que não quer mais. Como você vê essa questão na sua carreira?
É um ponto de vista. Os personagens são diferentes. Cada vez que você pega um, vai vivê-lo de uma forma, desenvolvê-lo. Me encanta descobrir o psicológico de uma mulher como a Belissa, por exemplo.
Aliás, como é seu processo para alcançar uma personagem?
Lento, doloroso. É muita formação teatral. Estudei muito Stanislavski. Por isso, gostava tanto de Eugênio Kusnet. Ele escreveu Ator e Método. Ele modernizou Stanislavski. O método dele é muito bem aplicável na TV, no teatro e no cinema. Você se enriquece de informações do personagem, das emoções, e fica com tudo na cabeça. Tudo sentido, vivido. Esse é o exercício.
Você faz esse mergulho sempre, mesmo sendo uma atriz experiente, que poderia se resguardar apenas na técnica?
Fica uma chatice. Vira o samba de uma nota só. É aí que a pessoa envelhece, acha que sabe tudo. Eu não sei nada! Quero procurar os personagens. O primeiro filme que fiz foi com uma atriz chamada Glauce Rocha (1930-1971). Ela me disse: “Betty, uma frase você pode dizer de 20 maneiras diferentes”. Guardei para o resto da vida.
Sempre fui vagabunda do cinema. Me chamam, eu saio abanando o rabo
Falei sobre o posicionamento de Fernanda Montenegro e Susana Vieira. Há uma geração na música, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Caetano Veloso, que está se despedindo dos palcos, dos shows. Você também foi próxima deles, da música brasileira. Você apresentou um programa musical na TV Globo (Brasil Pandeiro) no qual atuava com os cantores. Como pensa essa questão da aposentadoria?
Brasil Pandeiro era lindo! Não fiz mais uma temporada por culpa do (diretor) Cacá Diegues. Sempre fui vagabunda do cinema. Me chamam, eu saio abanando o rabo. Ele me chamou para fazer o Bye, Bye, Brasil e eu fui...Minha intuição me disse que eu deveria fazer.
Que bom que você foi.
Organizei minha vida com os pais dos meus filhos e fui na Caravana Rolidei, que é um sucesso por onde passa. Me levou para o Festival de Cinema da Índia.
É seu filme predileto?
Não posso dizer isso. Seria uma ingratidão tremenda com os demais. Bye, Bye, Brasil no cinema é igual a Tieta na televisão. São os mais famosos, Mas há outros filmes que adoro. Gosto do meu trabalho em Romance da Empregada. Tem o Anjos do Arrabalde (1987), que adoro. Agora, tem o Justa, da Teresa Villaverde. É meio leviano, mas sempre acho o último que fiz o predileto. Meio banal falar que foi um desafio, não? Mas, foi. Filmar nas aldeias de Portugal, onde houve as queimadas, naquelas estradas pequenininhas...
Você é muito crítica com seu trabalho?
Muito! Não assisti a nenhuma cena dessa nova novela. Não peço para ver. Porque, senão, é uma guerra. Quanto mais tempo tenho de profissão, mais know-how eu tenho, e a exigência fica maior. Se sou exigente com os outros, imagina comigo...
Gostaria de voltar àquela pergunta da aposentadoria de sua geração...
Eu saí fora, né? (risos).
Por mais que não seja um assunto fácil...
Deixe eu te entrevistar: Por que você acha que não é um assunto fácil?
Porque lida com a finitude, despedidas. Muitas pessoas se incomodam em falar. Volto nesse assunto porque você falou sobre a experiência que acumula com cada personagem...
Caetano e Gil fazem shows que exigem viagens. Isso é muito duro. Os grandes shows exigem muito responsabilidade. Não podem fazer apenas uma porque precisam dar trabalho para a banda, equipe. Eu posso fazer uma peça de teatro, um monólogo, aqui no Rio, em Ipanema, perto de casa. Escolher viajar para São Paulo, viajar pelo Brasil ou fazer em Portugal. Venho gravar na TV, o carro me apanha e me leva para casa. A equipe cuida de mim, acende a luz para eu andar pelo estúdio. É diferente. A verdade é que eu gosto de trabalhar.
Há alguma personagem que você ainda quer fazer?
Sempre tem! O mundo está cheio de mulheres mais velhas, bem sucedidas ou frustradas, amorosas ou rancorosas. Tem que ter vontade. Quero fazer um filme de uma amiga minha em Portugal, depois da novela.
Não posso deixar de perguntar sobre Tieta. A novela faz 35 anos em 2024. É sua personagem mais importante?
Tieta é um acontecimento, um fenômeno. Quando fui filmar Justa em uma aldeia de Portugal, a figurinista me deu um casaco bacana, bonito. Mas senti que estava muito frio - pegamos menos 5 graus -, não ia segurar. Convenci a diretora para comprar um que estava pendurado em uma lojinha. Falei ao dono: Que casaco gostoso! De que é feito?. Ele disse que era de ovelha. Eu exclamei: Coitadinha! “Já está morta, dona Tieta!”, ele respondeu. Veja só...Em uma aldeia, na Serra da Estrela, tantos anos depois. Esse homem massageou meus pés, pois eu estava com uma bota de nylon. Com a meia de lã, meus pés suaram e os dedos congelaram. Ele gritava: “Estou a massagear os pés de dona Tieta! Tirem foto!”. Ele me convenceu a comprar uma bota, que é a que usamos no filme.
A Tieta é um acontecimento, um fenômeno
Você queria muito fazer a Tieta, não?
Quem me deu a Tieta foi a Zélia Gattai, muitos anos antes. Ela e Jorge Amado me convidaram para jantar em Londres, na primeira e única vez que estive lá. Zélia me disse que Jorge estava escrevendo um livro que tinha uma personagem que seria muito boa para eu fazer dali a alguns anos. Era a Tieta. A velha que me deu a Tieta! Anos depois, fui para Cannes com o Romance da Empregada. Na volta, parei em Paris, conversei com eles para comprar os direitos. Paulo Ubiratan (diretor) queria fazer uma minissérie na Globo. Não rolou. Fui fazer (a novela) O Salvador da Pátria. No meio da novela, Boni me chamou e disse: “Você não vai rejeitar essa personagem desta vez”. Eu havia rejeitado a Porcina (de Roque Santeiro, em 1985), e eles estavam na bronca comigo. Eu não gostava da Porcina. Achava ela mau-caráter (o papel coube a Regina Duarte).
Querem fazer um remake de Tieta. Indico a Juliana Paes para o papel. Porém, parece que o Aguinaldo (Silva) não quer. E, sem aquele texto maravilhoso dele, não tem. Aguinaldo foi avançado. Tem coisas em Tieta que hoje seriam um escândalo com esse falso moralismo, com essa hipocrisia, que vivemos.
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