“Não sou um autor. Sou um escritor de folhetins”. A frase dita por Gilberto Braga (1945-2021) certa vez em Paris poderia perfeitamente constar de algum roteiro das dezenas de novelas que escreveu – quase todas levadas ao ar no chamado horário nobre da TV Globo, única emissora que trabalhou – foram 49 anos de contrato.
Há outra dele, igualmente reproduzida na biografia Gilberto Braga – O Balzac da Globo (Editora Intrínseca), dos jornalistas Artur Xexéo e Mauricio Stycer, que será lançada nos próximos dias: “O dinheiro é meu personagem principal”.
Ambas as sentenças são fundamentais para entender o que movia a personalidade de Braga, sobretudo quando à sua frente estava uma folha em branco esperando grandes diálogos. Nascido em Vila Isabel, bairro do Rio de Janeiro, Braga teve uma infância e adolescência com alguns dramas familiares, mas pertencia à classe dos chamados remediados.
Sem formação acadêmica, Gilberto, na juventude, sobrevivia de dar aulas de inglês e francês para famílias abastadas e de escrever críticas de teatro. Não via futuro em nenhum dos dois ofícios Tinha a ambição de ascender socialmente – e isso não seria também uma obsessão de personagens como Maria de Fátima (Vale Tudo), Lídia Laport (Pátria Minha), Bebel (Paraíso Tropical) e Laura Prudente da Costa (Celebridade)? Soube que escrever para a TV dava certo dinheiro. Pediu uma chance ao diretor Daniel Filho.
O livro se debruça, não sem propósito, na trajetória de Gilberto como crítico de teatro do jornal O Globo, função que ele exerceu durante toda a década de 1970 – e, em seus últimos anos, conciliou com o trabalho na TV. Os textos colaboram também para entender o Gilberto escritor de telenovelas.
Em trechos reproduzidos ou narrados, há ressalvas do jovem autor à Fernanda Montenegro – que, posteriormente, protagonizou algumas de suas novelas – e enaltecimento à capacidade genuína de Dercy Gonçalves de se comunicar com o público. Para o experimental, incluindo Zé Celso, há certo desinteresse.
Essa parte, segundo Stycer, foi estruturada por Xexéo, que morreu durante o processo de feitura do livro – com a morte do jornalista, Stycer assumiu o trabalho. É de Xexéo também grande parte das entrevistas feitas com Gilberto. Com o que foi deixado por Xexéo, além de entrevistas complementares com Gilberto, Stycer encontrou o tom da narrativa.
A intimidade que ele desenvolveu com a classe média alta, aliada a tudo o que ele via nos filmes – Gilberto era um grande cinéfilo - fez com que ele virasse um craque em falar sobre ricaços e as relações de poder, sem ser pedante. Daí, o (escritor francês) Balzac da Globo.
Nesse quesito, sobrava em Gilberto o que faltava em outros autores das oito da época. Janete Clair, de quem ele foi pupilo, era adepta do melodrama. Dias Gomes e Lauro César Muniz, escritores mais de esquerda, retratavam as classes abastadas de maneira mais crítica – afinal o que são Odorico Paraguaçu (O Bem Amado) e Sinhozinho Malta (Roque Santeiro) senão caricaturas de ridículos tiranos?
Stycer afasta a possibilidade de Gilberto ter se mantido na árdua tarefa de escrever uma telenovela apenas por dinheiro. “Quando ele ambiciona entrar na Academia Brasileira de Letras, ela diz em seu discurso que novela é literatura igual ao teatro, a um romance. Isso, para mim, reforça a ideia que era tudo charme do Gilberto. Ele sabia da importância da novela no Brasil”, diz.
Quando perguntavam para o Gilberto sobre o que era a novela, ele respondia: ‘sobre o dinheiro, igual em Balzac’. Gilberto tinha essa missão de retratar esse mundo do dinheiro, das ambições, e da falta de mobilidade social
Mauricio Stycer
Stycer afasta a possibilidade de Gilberto tem se mantido na árdua tarefa de escrever uma telenovela apenas por dinheiro. “Quando ele ambiciona entrar na Academia Brasileira de Letras, ela diz em seu discurso que novela é literatura igual ao teatro, a um romance. Isso, para mim, reforça a ideia que era tudo charme do Gilberto. Ele sabia da importância da novela no Brasil”, diz.
Homossexualidade, tema proibido
Gilberto Braga foi casado por quase quase 50 anos com o decorador Edgar Moura Brasil. Para conquistar o companheiro, que na época namorava uma mulher, Gilberto lançou mão de um artifício digno de novela. Conhecendo a rotina do amado, chegava antes aos lugares onde Moura Brasil iria passar e deixava bilhetes com uma palavra. Ao final do dia, Moura Brasil formava, então, uma declaração de amor.
Com uma relação sólida, os dois foram logo aceitos pela família, amigos e colegas de trabalho. A biografia revela apenas um episódio no qual o casal foi vítima de homofobia. Ainda nos anos 1970, Gilberto e Moura Brasil quase foram barrados na cervejaria Schnitt, em Botafogo, no Rio.
Eles foram juntos assistir a um show dos cantores Nora Ney e Jorge Goulart. O porteiro avisou que não era permitida a entrada de dois homens sozinhos. Braga disse que era crítico de teatro e os dois foram liberados, Porém, tiveram que entrar com as luzes do local já apagadas para o início da apresentação.
Na TV, no entanto, Braga sentiu o peso da homofobia e do conservadorismo da sociedade de maneira mais dura. Em 1981, na novela Brilhante, o autor quis mostrar a delicada relação da personagem Chica Newman, interpretada por Fernanda Montenegro, com o filho homossexual Inácio, papel que coube a Denis Carvalho.
Documentos nunca antes divulgados integralmente analisados por Stycer mostram que o departamento de censura da ditadura militar cerceou ao máximo a trama de Braga. Para os censores, era expressamente proibido dizer ou sugerir que Inácio era um homem gay.
Enquanto eu lia os pareceres da censura, foi me dando uma angústia. Um incômodo. Fiquei pensando: um autor homossexual receber relatórios dizendo que ele não poderia escrever sobre o tema. Foi uma perseguição implacável, capítulo a capítulo”
Mauricio Stycer
Stycer diz que Gilberto acreditava que a perseguição dos censores atrapalhou a novela, justamente por atacar um dos temas centrais da história. “A frustração dele foi tanta que o projeto que ele tinha era fazer um remake dessa novela com o título de Intolerância”, explica.
Gilberto voltaria a tratar sobre o tema em Vale Tudo (1988), com o casal Laís (Cristina Prochaska) e Cecília (Lala Daheinzelin), ainda sob o olhar de uma moribunda censura, e em Babilônia (2015), quando as companheiras Teresa (Fernanda Montenegro) e Estela (Nathalia Timberg) trocaram um delicado selinho no primeiro capítulo.
Nesse segundo caso, a censura foi do público, que rejeitou um casal lésbico com mais idade. “Nessa novela, Gilberto antecipou toda essa questão de conservadorismo e de preconceito que apareceria na sociedade nos anos seguintes”, opina Stycer.
Babilônia foi a última novela de Gilberto. Além de Intolerância, Gilberto deixou escrita uma minissérie em seis capítulos sobre Elis Regina, que teve a produção cancelada após o filme Elis, de Hugo Prata, e uma adaptação do romance Vanity Fair, de William Makepeace Thackeray. No livro, Stycer dá a entender que há uma divergência entre o viúvo do autor e a TV Globo sobre a quem pertenceria essas obras.
Em O Dono do Mundo, o desespero
Acusado sempre de priorizar as protagonistas femininas em detrimento de bons personagens masculinos, Braga resolveu investir em um grande vilão em O Dono do Mundo, sua sétima novela das oito. “Faz uma Maria de Fátima para mim!”, teria pedido o ator Antônio Fagundes para o autor, de acordo com o livro.
Braga, então, criou para Fagundes o temido e milionário cirurgião Felipe Barreto. Um cara frio que resolve tirar a virgindade da noiva de um funcionário de sua clínica antes do marido, durante a lua de mel. Um enredo que parecia perfeito.
Uma única cena colocou tudo a perder: foi Márcia, personagem de Malu Mader, depois de muito galanteio por parte de Felipe, quem bateu à porta do quarto do médico para viver sua primeira noite. O público não perdoou. A direção da Globo entrou em desespero com a queda de sua principal novela da noite, também motivada pela novelinha infantil Carrossel, exibida pela SBT no mesmo horário.
Um erro que o próprio autor reconheceu. “Gilberto ficou muito abalado”, conta Stycer. Uma aflição de um funcionário que gostava de cumprir com suas obrigações e agradar ao público ou vaidade de um autor acostumado, até aquele momento, apenas com o sucesso?
“Foi uma questão profissional mesmo. Ele achava que a função dele era falar com milhões de pessoas. E não podia errar. Quando ele entendeu como uma novela funcionava, teve a certeza que precisava se comunicar da melhor maneira com o público. Embora tenha sido doloroso (mudar a novela), pois ele achava que estava certo em O Dono do Mundo”, opina Stycer.
Para Xexéo, um dos autores da biografia, Gilberto foi o principal escritor brasileiro de telenovelas. Stycer recorre aos números para colocar seu biografado entre os três principais, ao lado de Janete Clair e Aguinaldo Silva, com quem Gilberto dividiu a autoria de Vale Tudo – e ele teria outros tantos colaboradores em suas obras. Foram doze novelas no horário das oito.
“Isso é subjetivo. Essa opinião é questionável, mas não é um absurdo. Gilberto foi mais versátil que a Janete, fez minisséries, novelas das seis e casos especiais “, diz Stycer, que aponta Vale Tudo como a melhor obra do autor.
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