Como os reality shows ficaram tão cruéis

Os críticos se arriscam por conta própria: os reality shows superaram todas as tentativas de quem ousou escrever seus obituários

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Por Maura Judkis (The Washington Post)
Atualização:

A primeira temporada de The Real World quase terminou em motim. As câmeras da MTV estavam ali para capturar o que acontece quando sete pessoas que não se conhecem e que são selecionadas para morar num mesmo apartamento “param de ser gentis e começam mostrar sua verdadeira face”.

Filme ‘O Show de Truman’ trazia o personagem de Jim Carrey dentro de um reality show Foto: Paramount Pictures / Divulgação

Mas o que se descobriu foi que a “verdadeira face” dos participantes era um pouco gentil demais e não rendia um programa de televisão muito empolgante. Então, os criadores Jon Murray e Mary-Ellis Bunim inseriram um pouco de drama – Bunim chamou a manobra de “jogar pedrinhas na lagoa” – deixando na mesa da sala um livro no qual um dos participantes posava para fotos nu.

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Funcionou perfeitamente: os colegas de reality tiraram sarro, o modelo chorou – mas, nos bastidores, o tiro quase saiu pela culatra. Imbuídos da intolerância da Geração X à inautenticidade, os participantes e a equipe técnica se revoltaram, uma cena que a crítica Emily Nussbaum, ganhadora do Prêmio Pulitzer, descreve em Cue the Sun! The Invention of Reality TV, seu novo e arrebatador livro sobre o amadurecimento desse gênero televisivo tão difamado. A produção de The Real World foi interrompida e, numa reunião furiosa, os participantes ameaçaram cair fora.

Se eles tivessem conseguido, talvez houvessem antecipado o acerto de contas dos Estados Unidos com os reality shows – nossa atual reavaliação da ética, da remuneração e das obrigações legais dos programas do gênero, potencialmente por meio da sindicalização dos trabalhadores. Em vez disso, sua pequena rebelião hoje parece quase pitoresca em comparação com as duas décadas seguintes, nas quais o gênero – que Nussbaum descreve como “um cinema verité misturado com contaminantes comerciais, para baixar o preço e intensificar o efeito, como uma droga vendida nas ruas” – atinge seus pontos mais altos e mais baixos.

Ou talvez ainda não os tenha atingido. Uma das linhas que perpassa a reportagem de Nussbaum é o número de vezes que os detratores declararam que os reality shows estavam mortos, declarações que tendem a ser feitas depois que o gênero cria um novo formato: Cops, Big Brother, Joe Millionaire. Os críticos se arriscam por conta própria: os reality shows superaram todas as tentativas de quem ousou escrever seus obituários.

O título de Nussbaum é uma referência a O Show de Truman (1998), filme de Peter Weir de estrelado por Jim Carrey como a estrela involuntária e vitalícia de um reality show que leva seu nome. Quando Truman tenta fugir no meio da noite, o criador do programa, interpretado por Ed Harris, manda “entrar o sol” antes da hora, um momento que revela a Truman as camadas de manipulação que o envolveram a vida toda.

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Nussbaum destaca as pessoas que criaram alguns dos reality shows mais amados e polêmicos da televisão, desde os executivos que deram luz verde (ou vermelha) a Survivor até os produtores e editores de campo – função que o setor chama, apropriadamente, de “preditor” quando também envolve moldar as ações do elenco –, que questionaram e defenderam a ética de seus empregos. E, é claro, Nussbaum destaca também as pessoas que fizeram parte dos elencos desses experimentos psicológicos, que refletem sobre o que aconteceu com suas vidas depois de saírem do aquário da fama.

Essa categoria de celebridade é mais antiga do que as pessoas imaginam. As origens de nossos reality shows, escreve Nussbaum, estão nos programas de rádio em que os participantes telefonavam para os apresentadores e se abriam, ao vivo, no ar, para milhões de desconhecidos. Ela sonda os remanescentes do elenco e da equipe da série de documentários An American Family (1973) e as repercussões que seguiram seus participantes ao longo da vida. E nos guia por uma fase particularmente desagradável de programas niilistas como Alien Autopsy, Shocking Behavior Caught on Tape e World’s Biggest Bitches, programa tão perverso que parece paródia e que nunca foi ao ar.

Do The Gong Show ao American Idol, ou do American Idol às Kardashians, duas forças interdependentes moldaram o gênero: a ingenuidade e o sadismo. Os melhores programas são os mais exploratórios, e os melhores participantes são aqueles que nos surpreendem – e surpreendem a si mesmos – porque ainda não sabem como jogar o jogo. Pelos mesmos motivos, quanto mais ético for o programa, menos elétrica será a filmagem – muitas vezes porque, depois de várias temporadas, os participantes sabem no que estão se metendo. É por isso que a primeira temporada muitas vezes é a melhor. Pense no choque de ver um homem de repente pedir em casamento uma mulher com quem ele só falava através da parede quando Casamento às Cegas estreou na Netflix, em 2020. O prazer se encontra inteiramente na irrealidade paradoxal, na tolice encantadora de pessoas que não têm ideia do que estão fazendo, se atrapalhando em circunstâncias que ainda não compreendem.

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E, ainda assim, todas as espécies do ecossistema de reality shows – showrunners, preditores, participantes e (talvez especialmente) espectadores, que adoram se divertir com a desgraça de gente tonta o bastante para mostrar a cara na TV – podem ser caracterizadas, quase inevitavelmente e quase sempre desde o início, pelo sadismo. Stanley Milgram, o psicólogo que conduziu o famoso experimento sobre “obediência” com choques elétricos falsos na década de 1960, escreveu um ensaio elogiando o programa Candid Camera em 1979.

Mas ele teria ficado ainda mais fascinado com o que veio depois: um participante de Expedition: Robinson, precursor sueco de Survivor, se suicidou depois de ter sido o primeiro a ser eleito para sair da ilha, relata Nussbaum, e o apresentador Jeff Probst admitiu em um documentário que ficar sabendo do suicídio fez com que ele se interessasse pelo programa “muito mais do que estava no começo”. Em um teste para o programa que se tornaria Big Brother, um produtor teve nítido prazer ao fazer um participante chorar descontroladamente com menos de três horas de filmagens.

The Osbournes seguia a famosa família liderada por Ozzy Osbourne e foi sucesso an MTV. Foto: MTV / Divulgação

Nos anos 2000, à medida que os americanos começaram a entender a noção de fama dos reality shows e a persegui-la como uma carreira, os participantes perderam um pouco da desenvoltura que gerava todo o carisma de personagens como Lance Loud, de An American Family – um dos primeiros gays a se assumir na televisão. As grandes celebridades conseguiram capturar parte disso em programas como Newlyweds e The Osbournes, numa inversão interessante: o reality era um gênero que podia transformar pessoas reais em celebridades, e celebridades em pessoas reais. O que os participantes perdiam em inocência, ganhavam em poder e influência: eles aprenderam a se moldar à imagem dos produtores, a almejar uma “edição favorável” – ou, pelo menos, uma “edição de vilão” – que pudesse lhes render mais oportunidades. Um deles fez isso até chegar à Casa Branca.

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O extenso livro de Nussbaum às vezes fica atolado nos dramas e disputas dos executivos das redes de televisão. Muito mais interessantes são as seções que nos levam aos sets de filmagem. Por exemplo: como foi estar trancado na casa do Big Brother em 11 de setembro de 2001 e não ter ideia de que os Estados Unidos tinham sido atacados? Ou como foi trabalhar na equipe de Survivor, enfrentando algumas das mesmas dificuldades que o elenco – quase morrer de fome, exaustão pelo calor, lagartos agressivos – mas sem nada de fama nem glória?

Ou, ainda, como foi se casar ao vivo na televisão com um homem que você acabou de conhecer? A exploração de Nussbaum do império de reality shows de Mike Fleiss (você deve conhecê-lo por ter criado The Bachelor e pouco depois abandonado o programa por causa de uma investigação por discriminação) é contada em parte pela voz de Darva Conger, a vencedora do especial de 2000 Who Wants to Marry a Multi-Millionaire? O casamento foi pelos ares quando se descobriu que o astro Rick Rockwell não era exatamente milionário e também tinha uma ordem de restrição movida contra ele por uma ex-noiva.

Conger contou a Nussbaum que ficou em choque quando disse sim, lendo o teleprompter, e que, mais tarde, teve medo de ficar sozinha com Rockwell. Mas, dada a política de gênero distorcida daquela época, ela também foi difamada em público por participar do programa “só para curtir” – expressão que tempos depois se solidificou numa máxima sobre as participantes do Bachelor que estão ali “pelas razões erradas” – e posar para a Playboy e ganhar dinheiro depois de perder o emprego de enfermeira.

Após o escândalo Multi-Millionaire, Nussbaum escreve que a Fox reuniu toda a empresa e instituiu uma nova política, recebida com uma salva de palmas: não haveria mais reality shows. Basta dar uma olhada na programação atual da emissora para ver o quanto essa ordem foi cumprida.

Todo mundo estava viciado nos lucros, mas ninguém queria pagar a conta. Como disse a Nussbaum o criador de Cops, John Langley, reconhecido como um dos padrinhos do gênero: “Eu não sou responsável pelos desgraçados que vieram depois”.

Muitos seguiram o caminho de Conger: pretendentes do Bachelor, o pessoal do pod de Casamento às Cegas, os tentadores e tentadoras de Temptation Island, os noivos do extenso multiverso de 90 Day Fiancé. Alguns programas e finais nunca teriam acontecido se houvesse menos – ou mais – manipulação por parte dos produtores.

O livro aborda só de leve e perto do final os esforços recentes para lidar com os reality shows, liderados por figuras como Bethenny Frankel, uma das Real Housewives of New York City, que sugeriu que os participantes de reality shows formassem um sindicato, e os membros do elenco de Casamento Às Cegas, que entraram com processo alegando maus-tratos e criaram uma fundação para apoiar participantes de reality shows.

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Embora Nussbaum não pareça particularmente favorável a essas ações – “Eles sabiam no que estavam se metendo, então que assumam as consequências” – sua reportagem apresenta um bom argumento para explicar por que movimentos assim são necessários.

É verdade que hoje os participantes não são mais bobos – eles estão mais para colaboradores que sabem quais níveis de drama e antagonismo são necessários para fazer um bom programa de TV e os fornecem de bom grado. Então devem ser compensados de acordo, e pela produção, não apenas por acordos de marca oferecidos a eles depois que viram estrelas. Se você jogar pedrinhas demais na lagoa – para usar a metáfora do cocriador de The Real World – vai acabar aumentando sem querer o nível da água. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Análise por Maura Judkis
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