Entenda o caso Porta dos Fundos e a discussão sobre censura e liberdade de expressão e de religião

Advogados comentam o caso de proibição do especial de Natal do Porta dos Fundos, que será decidido agora no STF

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Foto do author Maria Fernanda Rodrigues

A decisão da Justiça do Estado do Rio de mandar a Netflix tirar do ar o especial de Natal feito pelo grupo humorístico Porta dos Fundos, divulgada nesta quarta-feira, 8, e que está levando o grupo e a Netflix ao Superior Tribunal Federal na tentativa de reverter a decisão, coloca lado a lado, em conflito, dois princípios constitucionais - o da liberdade de expressão e o da liberdade de consciência e crença.

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O Estado conversou com dois advogados sobre a questão, Vera Chemim, advogada constitucionalista, e Floriano de Azevedo Marques Neto, diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, e também com Cristina Costa, professora de Comunicação e Cultura da ECA-USP e coordenadora do Observatório em Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura, da universidade.

Para Cristina, a proibição do episódio de Natal do Porta dos Fundos, chamado Primeira Tentação de Cristo e que retrata Jesus Cristo como um homossexual que se envolve com Lúcifer e mostra Maria traindo José com Deus, é um caso de “violação do direito à liberdade de expressão”. Ela aproveita e contextualiza o conceito de censura.

Cenal do 'Especial de Natal Porta dos Fundos 2019: A Primeira Tentação de Cristo' Foto: Netflix

“Quando falamos em censura, falamos de um processo sistemático. A censura clássica é feita por um órgão do governo, por funcionários públicos, e abarca toda a produção simbólica. Todo filme, todo espetáculo é avaliado. Nós ainda não temos esse tipo de censura. A censura clássica foi extinta no mundo ocidental no final do século 20, mas deu origem a outras formas de interdição - e uma delas é a censura togada, feita pelo poder judiciário. Uma pessoa que acha que uma publicação afeta sua imagem ou invade sua privacidade pode recorrer à Justiça. Há cerca de 10 anos o poder judiciário tem atuado como censor”, considera.

Na opinião da professora, os juízes não conhecem o cinema, o teatro, etc., e, por isso, as decisões acabam sendo arbitrárias. Fora isso, ela diz, o poder executivo também tem exorbitado o seu poder e está começando a proibir - um caso recente foi o da Bienal do Livro do Rio, quando a Prefeitura tentou tirar de circulação obras com conteúdo LGBT. Ela completa dizendo que a iniciativa privada também faz isso, e citou o cancelamento da exposição Queermuseu pelo Santander Cultural.

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“É mais difícil combater a censura hoje porque ela está aparecendo de forma diversificada. Outro problema é que temos um sistema muito autoritário e qualquer autoridade se julga no direito de dizer o que pode ou não ser assistido, lido, dito.” 

Liberdade de expressão e de religião e valor moral

Para a advogada Vera Chemim, a decisão de Benedicto Abicair, da 6ª Câmara Cível, é “inconstitucional”. Ela diz que é preciso separar os princípios constitucionais dos valores morais.

“Os valores morais de uma determinada parte da sociedade, neste caso os católicos e cristãos que se viram afrontados pelo programa, não têm a ver com o direito ou com o que a Constituição e as leis determinam. A demanda junto ao Judiciário vai ser perdida.”

Ela comenta, ainda, que é de conhecimento de todos que o Porta dos Fundos trabalha com a sátira e que, portanto, não há o que ser questionado. Diz ainda que é possível não gostar, achar de mau gosto, mas que não se pode proibir.

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Ela não quer, com isso, dizer que vale tudo em nome da liberdade de expressão. “Você não pode criar nada que faça apologia ao nazismo, ao racismo, que apóie o terrorismo ou tráfico de pessoas, por exemplo. Neste caso, estaria extrapolando os direitos e garantias fundamentais garantidos pelo artigo 5.º da Constituição e a decisão teria de ser contrária."

Uma decisão perigosa

O advogado Floriano de Azevedo Marques Neto considera a decisão da Justiça do Rio contra o Porta dos Fundos e a Netflix perigosa. 

“Ela arbitra pela liberdade religiosa, mas tendo uma compreensão de liberdade religiosa muito ampliada. Uma coisa é que eu possa livremente professar meu credo. A outra é impedir que uma pessoa que não tem a mesma crença ou que tenha outra não possa ter uma indiferença ao meu credo. É uma interpretação perigosa. Se for esse o entendimento do Judiciário, amanhã ou depois um evangélico poderá ser proibido de fazer um vídeo no YouTube criticando o credo umbandista. Ou não poderá haver um canal professando o ateísmo e procurando desmerecer qualquer tipo de crença”, comenta. 

“Uma pessoa com formação cristã pode até achar desrespeitoso e execrar, ou fazer uma campanha de boicote. Mas, impedir que eles manifestem a opinião deles, equivocada na opinião dos católicos, é exagerado e perigoso”, completa.

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Outra questão o preocupa, e ela está expressa no voto do desembargador: a referência ao fato de que a maioria da população brasileira é católica. “A liberdade de culto não pressupõe maioria, mas que, individualmente, cada um possa professar o seu culto, nem que seja o culto do endeusamento da bananeira. Não é porque 70% da população é cristã que um vídeo agressivo, grosseiro, indelicado, possa ser visto como algo a ser proibido e retirado do ar.”

Para Floriano Azevedo, essa decisão não pode ser aceita juridicamente.