O ator Ney Latorraca costuma acordar por volta das 10h, toma um café e dedica mais de uma hora para cuidar da coleção de orquídeas que ocupa uma das varandas de sua cobertura, no Rio de Janeiro. “São mais de vinte vasos”, avisa. No fim da tarde, quando o sol começa a baixar, ele caminha por uma hora ao redor da Lagoa Rodrigo de Freitas e volta para ver a novela No Rancho Fundo, exibida pela Rede Globo, logo depois das 18h. “Os meus amigos estão todos lá, Eduardo Moscovis, Débora Bloch, Andréa Beltrão, e até o pessoal mais jovem vem do teatro, ótimos”, elogia. “O garoto de Santos conquistou o conforto que tanto queria e merece sossego.”
É assim que Antonio Ney Latorraca, filho do crooner Alfredo e da atriz e corista Nena, falecidos há mais de três, chega aos 80 anos nesta quinta, 25, privilegiando as coisas simples do cotidiano. “Eu não estou aposentado, de jeito nenhum, mas para me tirar de casa, precisa ser um bom personagem, algo que me desafie”, anuncia. (Menos de um mês depois desta entrevista, Ney Latorraca descobriu que o câncer tinha voltado. O ator morreu em 26 de dezembro, no Rio de Janeiro)
Em agosto do ano passado, o artista foi convocado para uma reunião na Globo e, diante da reestruturação da empresa, acreditou que seu contrato vigente desde 1974 seria rompido. Passou nervoso à toa. O vínculo foi renovado por mais cinco anos, e o ator, assim como outros veteranos, a exemplo de Susana Vieira e Betty Faria, continuam funcionários da casa. “Nós ajudamos a construir a história da Globo e considero um reconhecimento”, diz ele, que está fora do ar que desde uma participação na série Cine Holliúdy, em 2019.
Leia também
Latorraca reconhece que os tempos de protagonista ficaram para trás e entende a dificuldade de escalação para nomes de sua faixa etária. “Quem faz papel principal grava dezenas de cenas por dia, decora quilos de texto e um ator mais velho não aguenta, pode ficar doente e colocar em risco uma produção inteira”, afirma.
Ele conta que já gravou novela de dia, fez teatro à noite e varou madrugadas em sets de cinema e tem a noção de que, depois de uma certa idade, uma rotina assim é inviável. “Imagina se eu e Marco Nanini resolvêssemos remontar O Mistério de Irma Vap?”, indaga, debochado. “A peça ficaria famosa, desta vez, pelo tempo que a gente demoraria na troca dos figurinos que, antes, levava poucos segundos.”
O ator sabe que o fenômeno O Mistério de Irma Vap, que ficou em cartaz entre 1986 e 1997, foi o seu maior sucesso e lhe trouxe a almejada estabilidade financeira. “Comprei minha cobertura, passei a viajar de primeira classe e pude dar todo o conforto para a minha mãe, que se foi em 1994, até o fim da vida dela”, conta, pedindo para mudar de assunto.
Para Latorraca, é mais importante falar de sua formação na Escola de Arte Dramática (USP), entre 1967 e 1969, e das escolhas profissionais, muito planejadas. “Acho que, deste jeito, ajudo a abrir os olhos dos jovens que precisam entender que os tais influenciadores ou aspirantes a celebridades têm vida curta”, declara. “A Grazi Massafera é a exceção porque estudou, trocou com os colegas experientes e tenho certeza de que vai arrasar como Dona Beja na novela da HBO Max.”
Dos corredores da USP, o intérprete recém-formado caiu no espetáculo O Balcão (1969), célebre produção de Ruth Escobar dirigida pelo franco-argentino Victor García, e, na sequência, participou do musical Hair e trabalhou com o diretor Antunes Filho em O Estranho Caso de Mr. Morgan (1972) e Bodas de Sangue (1973). “Comecei a fazer teatro em um país diferente, sonhador e idealista, e lutei para construir uma trajetória que agradasse a mim e ao público.”
A mudança para o Rio de Janeiro e a estreia na Rede Globo com a novela Escalada, em 1974, segundo o ator, não foi vantajosa financeiramente, mas ele sabia que tiraria proveito da vitrine para projetar o seu talento. “Logo entrei nas novelas Estúpido Cupido e O Grito, comecei a fazer filmes com cineastas que sempre sonhei trabalhar, como Ruy Guerra, Paulo César Saraceni e Ana Carolina, e jamais larguei o teatro, era tanta coisa....”, diz. “Hoje, o ator fica comprometido com uma novela por mais de ano, a produção começa meses antes e isso compromete o gancho que inspirou a história, o assunto fica velho, sabe?”
Para voltar aos palcos, Latorraca tem dois planos. O primeiro, acalentado há uma década, é protagonizar Rei Lear, o clássico de Shakespeare, e o outro é uma adaptação do romance O Castelo, de Franz Kafka, que vem conversando com o diretor Gerald Thomas. Em 2022, ele celebrou seis décadas de ofício com um espetáculo inusitado, Seu Neyla, apresentado no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Latorraca, de seu apartamento, contracenava através de um telão com o elenco que ocupava o palco do teatro. “Estava fragilizado, amedrontado de sair de casa naquele final de pandemia e foi o jeito encontrado pela produção de contornar o meu medo”, confessa. “Passei ileso pela covid, mas tive dengue há uns três meses e foi um horror, fiquei cinco dias no hospital, perdi até cabelo.”
Se, no passado, Latorraca era um arroz-de-festa, hoje, fica com preguiça de armar até um jantar íntimo para comemorar os 80 anos. Deve apagar as velas ao lado do ator Edi Botelho, seu companheiro desde 1995, e aguarda os telefonemas dos amigos de sempre, como os diretores Gerald Thomas e José Possi Neto e as atrizes Maitê Proença, Maria Padilha e Claudia Raia.
“Eu mereço ficar quieto, não tenho obrigação de agradar os outros e não me arrependo de nada na vida”, afirma, assumindo um ar reflexivo. “Quer dizer, me arrependo de ter fumado demais, dos 15 aos 57 anos, e sofrido pela minha obsessão por pontualidade, odeio gente que se atrasa, eu chegava adiantado até em festas.”
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.