“Se não existisse o YouTube, o que você seria?”, perguntei. Ele parou um pouco e devolveu como pergunta: “Influenciador digital?”. “E se não existisse a internet? O que você seria?”. “Eu nem existiria”, riu PC Siqueira, no meio da década passada, em um dos muitos almoços que fizemos no Rota do Acarajé, em Santa Cecília, quando o bairro ainda era vendido no mercado imobiliário como “Baixo Higienópolis”.
A conversa foi um dos inúmeros encontros que tivemos em 2015 para imaginar o que seria sua primeira incursão para além da internet, o livro que escrevi sobre o momento crucial de sua carreira de primeiro YouTuber brasileiro. A conclusão que ele não existiria online acabou batizando o livro e hoje o título do livro que escrevi sobre ele em 2016 — PC Siqueira Está Morto (lançado pela Companhia das Letras) — infelizmente é uma realidade. PC Siqueira foi encontrado morto em seu apartamento nesta quarta-feira, dia 27 de dezembro.
Ele nunca teve sossego desde que se tornou ativo na internet. Lançou-se online quase sem querer em 2009, quando chegou em casa e ligou a webcam para falar mal do filme Avatar, de James Cameron, e encontrou eco em tantos outros moleques entediados com o que lhes era oferecido como entretenimento. As redes sociais ainda estavam firmando-se como nova realidade digital. Vivíamos a transição da era de ouro do Twitter para a primeira fase de expansão do Facebook, quando o algoritmo das redes ainda trabalhava dentro da cronologia real e os assuntos eram discutidos simultaneamente, diferentemente das bolhas de assuntos distintos que tomam conta da internet hoje.
Foi quando o YouTube começou a premiar quem subia vídeos falando em frente à câmera (que ainda não estavam em todos nossos celulares, como hoje), uma época em que o computador ainda era desktop e o site de vídeos do Google tentava agir como uma rede social. PC Siqueira esteve no nascimento do que conhecemos hoje por YouTuber, que hoje é profissão e aspiração pessoal para milhões de indivíduos online.
O estilo briguento e falastrão de PC acompanhou uma mudança radical em sua personalidade. Sua principal característica física era o fato de ser vesgo e usar óculos, mas à medida que foi tornando-se popular, o que era uma fraqueza tornou-se força. Manteve o ar arquetípico de nerd ao mesmo tempo em que começava a tatuar-se, a aprender diferentes tipos de luta e enfiar o pé na jaca em grande — e trágico — estilo. Seus primeiros anos de popularidade foram marcados por brigas, polêmicas e excessos, numa época em que os cancelamentos online ainda não estavam tão em voga.
A vida desregrada lhe trouxe fama e dinheiro, mas também muitos desafetos. Em um dado momento de sua vida, ele via-se constantemente envolvido em problemas online de toda espécie, seja brigando publicamente com ex-namoradas, filmando sua constante autodestruição ou provocando hordas online apenas pelo prazer de se envolver em confusões.
Me aproximei dele ainda no início de sua fama, quando era editor do Link, caderno de Cultura Digital do Estadão. Além de pautar matérias com ele, também participei de mesas e discussões presenciais sobre autopublicação e vida online em que PC estava entre os convidados.
Quando a editora me convidou para escrever um livro sobre o YouTuber, topei desde que não tivesse que transcrever seus vídeos como capítulos nem fingir que ele havia escrito. PC, por sua vez, fazia exigências parecidas: não queria nem ter um ghost-writer nem tentar escrever o livro e não queria entregar o famigerado fan service que seus fãs já esperavam. Ao mesmo tempo, ele estava querendo sair daquela vida conturbada e se endireitar, por isso o título também funcionou como uma espécie de morte de um personagem que não existia mais. Por isso escrevi um livro de ficção em cima de histórias que ele me contou. Era uma espécie de aviso para os fãs: ei, crianças, não tentem isso em casa.
A capa do livro também entregava uma transformação importante deste período: de olhos fechados, PC corrigiria o estrabismo que o tornava tão reconhecível e aos poucos sairia daquela vida insana que levava. Fomos, inclusive para Los Angeles, filmar um dos contos — um de terror — para uma competição feita pelo YouTube no Halloween de 2016. Ele queria recomeçar sua vida desde então.
O livro foi lançado e foi como mais um capítulo em sua vida: uma vez passado, ele partiria para outras empreitadas — muitas offline — sempre buscando novas formas de se reinventar.
Infelizmente, nunca conseguiu. Teve sucesso em algumas coisas, em outras não e sentia-se ultrapassado por uma geração de YouTubers que sabia gerir suas carreiras melhor que ele e aos poucos espalhava suas personalidades para outras plataformas, tornando-se influenciadores digitais num sentido mais amplo do que PC conseguiu ser. Não conseguiu firmar-se e seguia com vários projetos, como o livro que fizemos juntos.
Até que uma acusação de pedofilia o transformou em pária de vez, mesmo que afirmasse ser vítima de uma armação para arruinar sua biografia que também funcionava como teste para destruir reputações num novo jogo político online. Logo que a acusação veio a público, PC fez questão de colaborar com as investigações, pois sabia que era inocente. Mas o tribunal inquisitório das redes sociais acabou por destruir sua personalidade, mesmo que depois tenha sido inocentado. Desde então parou de falar com a maior parte dos amigos que conheceu na década passada.
Nos últimos anos PC tentava reerguer seu canal pedindo patrocínios irrisórios em atualizações cada vez menos frequentes. De vez em quando voltava a ser assunto online, quase sempre envolvido em pequenas tretas que ganhavam força por conta de sua reputação pregressa, mas todos sabiam que era questão de tempo para que algo trágico acontecesse. Vítima de linchamentos online, PC sucumbiu à tragédia que se tornou sua vida, e sua morte pode abrir um novo capítulo em nossas vidas online — resta saber se é uma reflexão ou um gatilho para outras tragédias.
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