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A nova versão de Vale Tudo, escrita por Manuela Dias, só estreia em março na TV Globo. No entanto, o remake de uma das telenovelas mais emblemáticas da televisão brasileira já pauta debates desde que foi confirmada pela emissora como o principal produto das comemorações de seus 60 anos de existência.
Odete Roitman, a vilã das vilãs, será tão má e continuará a desprezar o povo brasileiro tanto quanto em 1988? Raquel, agora como mulher preta, vivida por Taís Araújo, terá sua história alterada? Marco Aurélio será mais bondoso nessa nova edição? A política será tema relevante, assim como foi na narrativa original da novela escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères?
A jornalista, professora e pesquisadora Ana Paula Gonçalves, que acaba de lançar o livro O Brasil Mostra Sua Cara: Vale Tudo, a telenovela que escancarou a elite e corrupção brasileira (Autografia), se debruçou para analisar o Brasil no final da década de 1980, e, noveleira assumida, encontrou em Vale Tudo o caminho para isso.
Fruto de seu doutorado iniciado em 2016 e concluído em 2020, o livro, que foi para a gráfica ao mesmo tempo em que a TV Globo anunciava o remake, traz importantes reflexões sobre a trama e deixa abertas as futuras possibilidades que Manuela Dias terá nessa adaptação da novela. Uma delas, inclusive, sem saber, foi antecipada por Ana Paula em seu texto: o fato de Raquel e Maria de Fátima, personagem que será interpretada por Bella Campos, serem negras - em 1988, foram papéis de Regina Duarte e Glória Pires, respectivamente.
Em entrevista ao Estadão, Ana Paula também comentou como deve ser essa Odete Roitman de 2025, confiada à atriz Débora Bloch. “A Odete de hoje tem tantas atrocidades para falar quanto no passado. Até piorou, se isso for possível”, diz, ao relembrar a marcante interpretação de Beatriz Segall no passado.
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Você é a favor ou contra o remake? E o que espera dele?
Eu gosto de boas histórias. E sou a favor que elas sejam recontadas. Só fico apreensiva sobre o resultado. Manuela Dias é uma autora corajosa. Inclusive, no meu livro, eu falo que Amor de Mãe não foi bem recebida por conta de algumas cenas bastante realistas, como tiroteio em escola pública ou do vilão comprando político para desapropriar terreno. As pessoas começaram a reclamar que não queriam ver aquilo na TV, preferiam algo mais leve. Quem estuda telenovela sabe que Amor de Mãe é excelente. Manuela Dias, então, consegue fazer o remake. Só não sei se ela pode fazer. A novela é um produto, tem que agradar a emissora, o público e os anunciantes.
Vale Tudo de 2025, em sua forma, deveria ser uma continuação ou um remake mesmo?
Não cabe uma continuação. Ela terminou muito redondinha. Odete morreu, Marco Aurélio fugiu, o Ivan pagou seus crimes. Remake com atualização é interessante. Mas, pergunto: a emissora vai querer mexer em determinados vespeiros? Vale Tudo foi a última novela a passar pela censura federal. No entanto, atualmente, com as redes sociais e a polarização política, eu vejo a censura maior ainda. Não sei até que ponto a Globo vai querer uma novela tão radical, que fale sobre corrupção e o preconceito da elite. A Odete vai poder falar tudo o que falava? Marco Aurélio vai poder demitir um funcionário apenas porque não gostou do nome dele? Me preocupo com esse tipo de mudança. Mexer em o que fez mais sucesso, vira uma adaptação, e não um remake.
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Odete Roitman, sem dúvida, será a personagem mais problemática para a autora. Em 1988, as falas da Odete atingiam em cheio os brasileiros, que hoje são mais conscientes de seu papel político e social do que há 30 anos. Então, quem será essa Odete de 2025?
Odete não é uma Nazaré (vilã de Senhora do Destino). Era vilã que, mesmo quem não tinha consciência de seus direitos, entendia que ela era uma pessoa ruim. O Gilberto Braga, que escrevia as cenas da Odete, queria mostrar o que a elite pensava sobre o povo brasileiro. Temos, agora, a escala 6X1, a PEC das empregadas... A visão da elite não mudou. As Odetes do mundo real não passaram a achar o povo bonito, o Brasil uma maravilha. A Odete de hoje tem tantas atrocidades para falar quanto no passado. Até piorou, se isso for possível.
Há muitas Odetes por aí, então?
Se você fizer visitas em cafés e restaurantes do Leblon, no Rio de Janeiro, irá encontrar várias Odetes...
O conflito central da trama era moral. Mas esbarrava na questão política. Naquela época, a corrupção era uma crítica de quase todos os brasileiros, mesmo entre aqueles que praticavam as pequenas corrupções diárias, que são retratadas em Vale Tudo. Atualmente há, e não havia tão forte em 1988, a polarização em basicamente dois grupos: a esquerda e a extrema direita. Que público vai se identificar com Vale Tudo agora?
Se Manuela manter a linha de outras novelas dela, Vale Tudo será bastante criticada - e já está sendo. Por questões ideológicas, muitos declaram que não assistem mais à TV Globo. O que não ocorria naquela época. Todo mundo assistia à novela, não tínhamos um País politizado e, sobretudo, não tínhamos as redes sociais e as fakes news, que tiram a atenção da novela, seja para migrar para outros produtos audiovisuais ou por ideologia. Mas o céu é o limite. Até a estreia, tudo o que eu ou outra pessoa disser será apenas uma conjectura. No entanto, se Manuela colocar falas da extrema direita em Odete, elas serão totalmente verossímeis.
Na abertura do seu livro, a (autora) Rosane Svartman fala sobre como a telenovela e o jornalismo muitas vezes caminham juntos. E a novela das 8, agora das 9, entra no ar após o Jornal Nacional. Nesse sentido, houve essa comunhão na época? E, agora, no remake, é imprescindível que ela ocorra também para que se mostre a cara do Brasil?
Eu analisei todas as novelas das 8 que foram ao ar na época da abertura política. Vale Tudo foi a única que não usou metáforas para falar sobre a corrupção na política brasileira. Muitas capítulos pareciam a continuação do telejornal. A imprensa se pautava em Vale Tudo. Na época, o Jornal do Brasil fez uma pesquisa para saber se o brasileiro estava mais esperançoso. Muitas respostas citavam Vale Tudo. Há uma cena em que Odete pede para um empresário demitir uma funcionária grávida. Ela diz claramente que a Constituinte só vem para atrapalhar os empresários, fazer o pobre achar que tem direitos. Vale Tudo, agora, vai ao ar em um ano pesado politicamente, com eleições em 2026. Será que essa comunhão se dará novamente? Não sei.
A telenovela não tem a mesma força de antes, mas ainda pauta bastante a realidade
‘Já viu alguém subir na vida sendo honesto no Brasil?’. É uma das frases de Maria de Fátima. Essa frase persiste no Brasil. A homofobia, o machismo e o etarismo, outros temas da novela, igualmente perseveram na sociedade brasileira. Citando Mauro Alencar (Doutor em Teledramaturgia), que diz que a telenovela é uma espécie de divã coletivo, que tipo de reflexão o remake poderá causar agora?
O divã, agora, é muito mais amplo. Atualmente, assistimos à novela junto com as redes sociais. Tudo vira um grande debate social. Eu gostaria que o remake de Vale Tudo trouxesse importantes discussões. Não estamos passando pela Constituinte, mas, ao mesmo tempo, estamos em um momento em que podemos perceber, socialmente, politicamente e jornalisticamente, que a democracia não está tão consolidada. A telenovela não tem a mesma força de antes, mas ainda pauta bastante a realidade. Mesmo uma novela ruim, que não dá audiência, é igualmente comentada.
Se a novela não trouxer esses debates, corre o risco de ser anacrônica. Atualmente, criticar ou fazer uma caricatura de um dos lados políticos, é tomar partido. Manuela Dias será cobrada por abordar um ou outro espectro político?
Ela já está sendo. Mais uma vez, a telenovela é um produto. Não acredito que a emissora tenha que escolher um lado. Não seria verossímil do ponto de vista do mercado. É um desafio muito grande. Um outro Brasil. Não que as Odetes não sejam mais cruéis. A Senhora dos Absurdos, do Paulo Gustavo, que fazia um humor atual, nada mais era do que Odete. Recentemente, uma senhora agrediu um motorista de aplicativo. Há pessoas que ainda pensam que vivem em um País em que há escravizados para servi-las. Manuela pode pegar esse aspecto e fugir do lado político. Pode fazer uma vilã e não entrar na questão política e, mesmo assim, ser crítica. Talvez essa seja uma boa saída.
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No livro, você faz uma reflexão sobre a falta de representatividade do negro no elenco de Vale Tudo original. Você, inclusive, sem saber, antecipa que Raquel deveria ser uma mulher negra. E a Taís Araújo foi escolhida para ser a Raquel dessa nova edição. Por que essa escolha foi importante?
O Brasil precisava disso. Para consolidar essa mudança social, não consigo imaginar uma Raquel que não seja negra. Fiquei feliz como pesquisadora de questões raciais, como uma pessoa que luta para mostrar que o Brasil não é branco. Entendo que aquela televisão de 1988 era extremamente branca. E essa não era uma questão à época. Mas, ao longo desses 30 anos, as pessoas passaram a cobrar essa representatividade. Quando a Globo exibiu Segundo Sol, em 2018, que se passava na Bahia e só tinha atores brancos, o Ministério Público do Trabalho (MPT) notificou a emissora para respeitar a diversidade racial. A questão é muito mais sobre dar uma identidade para o Brasil, por meio de um produto de grande popularidade, do que questionar quem é branco ou quem é negro.
Vale Tudo está com a faca e o queijo na mão para tratar a questão racial
Aí entra uma questão para a autora: A Odete de 1988 certamente também era uma pessoa racista e não apenas elitista. Sendo assim, para essa nova versão, em que ela vai ajudar uma menina negra (Maria de Fátima, filha de Raquel) a se casar com seu filho, Odete sofreria uma grande mudança em sua personalidade, não?
Nosso País sofre de uma questão de colorismo muito grande. Haveria a possibilidade de colocarem a Maria de Fátima branca, mesmo sendo filha de uma mulher negra. Estudo famílias inter-raciais, e isso é possível, com um pai branco e uma mãe negra, por exemplo. Minha mãe é negra e minha tia é branca, filhas do mesmo pai e da mesma mãe. Fico curiosa para saber qual será a mudança no perfil da Odete para aceitar casar seu filho com uma mulher negra. Um conflito muito maior do que aceitar a Raquel, porque, na primeira versão, ela já odeia a pobreza da Raquel. Imagina, agora, ela sendo pobre e negra. Por acaso, já vimos a elite brasileira se misturar?
Nesse ponto, a novela tem chance de abrir um debate importante sobre a questão racial?
Já tem gente dizendo que não irá ver a novela pelo fato da Raquel ser negra. Vale Tudo está com a faca e o queijo na mão para tratar sobre o tema.