Voltar da escola ao fim da tarde, ligar a TV e aproveitar um episódio da então recém-finalizada As Visões da Raven com um achocolatado em mãos era uma rotina comum para Lucas Oliveira no final dos anos 2000. Hoje com 25 anos, o estudante de cinema reencontrou na série de comédia, originalmente exibida entre 2003 e 2007, assim como em outras antigas favoritas, como The OC e Friends, um local de aconchego em meio às incertezas e aflições trazidas pela pandemia de covid-19.
Lucas calcula que, desde o final do ano passado, 90% dos filmes e séries a que ele tem assistido são obras da década de 1990, entre conteúdos já favoritos ou não-inéditos que ele ainda não conhecia. Quando pode, ele faz algumas das sessões à tarde, especialmente de produções como Raven e comédias românticas da época - justamente para evocar a sensação de quando ele as assistiu pela primeira vez.
“Eu já sou uma pessoa muito nostálgica. E eu sinto um conforto muito grande nessas coisas mais antigas que me remetem principalmente à minha infância. Então, se eu estou assistindo a uma série em que a caracterização dos personagens, a ambientação da série, os cenários, me remetem muito a esse tempo, isso me traz essa sensação de segurança”, diz Lucas. Com mais de um ano e meio de pandemia, muitos brasileiros ainda sentem falta de “tempos mais simples”. Uma breve pesquisa no Google Trends, serviço que permite monitorar tendências da plataforma de buscas, aponta que o termo “nostalgia” teve seu maior pico do período no País em março deste ano, enquanto “saudade” foi mais pesquisada em abril de 2020 e maio de 2021. E, com mais tempo em casa, as plataformas de streaming se tornaram uma espécie de máquina do tempo para vários consumidores.
Em 2020, a Netflix atingiu a marca recorde de 37 milhões de novos assinantes no mundo, ultrapassando 200 milhões de usuários totais. A Disney+, que chegou ao Brasil em novembro, já superou 116 milhões de clientes pelo mundo. A HBO Max, que inclui produções famosas do estúdio Warner Bros., atingiu a marca de 69 milhões de assinantes globais desde que estreou na América Latina no fim de junho. Já a nacional Globoplay registrou, só no primeiro semestre de 2020, um crescimento de 145% em assinaturas.
Assim como Lucas, a designer Susan Volanski, de 25 anos, recorre a algumas dessas plataformas para relaxar e se desligar da realidade. Mesmo antes da pandemia, ela já tinha um conjunto de séries e filmes “de conforto” - como Harry Potter, que ela costuma rever todo ano. Mas a crise sanitária fez com que ela se voltasse ainda mais a esses produtos como uma forma de escape, especialmente quando quer um momento de desligamento aos fins de semana e depois do expediente de trabalho. Além de Friends, títulos como Gilmore Girls e Modern Family têm sido constantes em sua lista de reassistidos.
“Como a gente está passando por uma pandemia, um caos político, às vezes você só quer saber o que vai acontecer no final do filme, que você sabe que você vai ficar feliz. Eu vou assistir isso aqui, eu vou mexer no celular junto, eu sei que eu vou dar risada, não vai ser algo que vai realmente me gastar psicologicamente depois”, diz. “Me trouxe muita paz.”
A saga do jovem bruxo de Hogwarts também tem sido uma das favoritas da estudante de jornalismo Maria Carolina Gonzalez, de 23 anos, que já reassistiu a Harry Potter pelo menos cinco vezes desde que a pandemia começou. Para ela, a série de filmes a transporta de volta para bons momentos da infância, enquanto a comédia How I Met Your Mother, revista duas vezes desde março de 2020, a faz lembrar de sua adolescência. “É meio uma sensação de épocas que a gente era feliz e sabia. E agora se agravou, parece uma realidade muito distante. Antes era só por prazer mesmo, mas agora é meio que para reviver épocas boas. Lembrar que já existiu um mundo antes da pandemia”, diz Maria.
A nostalgia é uma forma de encontrar certa estabilidade e controle em meio ao caos, aponta a psicóloga clínica Alessandra Ribeiro. Ela explica que em momentos desafiadores e de crise, como luto, perdas, isolamento, ansiedade e tristeza, é comum se voltar ao saudosismo, inclusive pelo entretenimento.
Por outro lado, a nostalgia em excesso pode desencadear depressão e ansiedade quando a pessoa se apega ao passado e o questiona, além de compará-lo ao presente, remoendo pensamentos e emoções e lamentando mudanças.
“Desde que em equilíbrio, a nostalgia é saudável e nos auxilia em momentos de crise, criando um apego seguro a memórias afetivas reconfortantes para que a partir dali, consigamos nos reestabelecer emocionalmente, ter esperanças e inspiração para seguir em frente”, diz Alessandra.
Segundo o jornalista e pesquisador Bruno Leonel, que desde 2013 estuda a nostalgia na mídia, o saudosismo com personagens e produtos do passado não é algo novo. Mas a pandemia fortaleceu ainda mais esse sentimento em relação a um passado muito mais recente - a ponto de uma produção como Parasita, por exemplo, vencedora do Oscar de Melhor Filme em 2020, já carregar ares nostálgicos para alguns espectadores.
“Como a pandemia veio em 2020, 2019 se tornou um passado até idílico. ‘Olha, como a gente podia juntar os amigos e se aglomerar no cinema.’ Ou fazer pequenas coisas que depois da pandemia não foi possível. Coisas de um passado recente, de 2019, séries, filmes, acabaram simbolizando esse ‘velho mundo’”, explica.
O pesquisador aponta que, além de esse resgate do passado estar muito ligado ao conforto e aconchego de lembranças mais alegres, a tendência é de o saudosista esquecer pontos negativos daquela época ou, até mesmo, rememorar aqueles momentos de forma amarga, desejando que tivesse aproveitado melhor aquele período.
“A pessoa às vezes tende a não ver os aspectos negativos. Nos anos 1990 tinha muita coisa ruim no Brasil - por exemplo, inflação, crise econômica, enfim - e você tende a não resgatar esses aspectos negativos e só lembrar de como isso era agradável, de como isso era confortável para você”, diz.
Outra questão é a maturidade e o contexto diferenciados com que os fãs retornam a esses produtos. Maria Carolina, por exemplo, admite que, apesar de ser divertido notar “novos” detalhes em suas produções favoritas que haviam passado despercebidos em sessões anteriores, muitos deles não envelheceram bem, algo também pontuado por Lucas e Susan. Os três apontam a favorita Friends como uma das mais problemáticas nesse quesito, com piadas machistas, homofóbicas e gordofóbicas, além da falta de diversidade e situações questionáveis no relacionamento entre os protagonistas Rachel (Jennifer Aniston) e Ross (David Schwimmer).
“Já teve episódio de Friends que eu já tinha visto há tempos atrás e que eu estava reassistindo agora e eu fiquei tão incomodado que eu não consegui rir o episódio inteiro. E é uma série que eu racho de rir”, conta Lucas.
Mesmo assim, há também uma compreensão de que aqueles são produtos de sua época, quando certas frases e posicionamentos hoje mais amplamente repreendidos eram mais aceitáveis, e até mesmo um encantamento com a simplicidade e uma certa ingenuidade daqueles produtos.
Outro ponto a favor de produções não-inéditas é que, além de elas não demandarem tanta atenção por já serem histórias conhecidas, muitas delas não precisam de um acompanhamento em ordem, especialmente no caso de séries: sitcoms como Friends e dramas procedurais como Law & Order costumam ter um arco narrativo que começa e termina no próprio episódio - permitindo que o espectador assista às produções de forma quase aleatória.
Olha eles aí outra vez
Apesar de as principais plataformas não divulgarem dados sobre suas audiências, o site JustWatch, que monitora serviços de streaming, mostra que algumas das produções mais assistidas atualmente são não-inéditas ou, pelo menos, resgatam personagens já conhecidos - um fenômeno antigo, mas que tem reaparecido com força nesse período.
Na HBO Max, por exemplo, uma das séries mais populares é Friends, que em 2021 reuniu atores e membros da produção em um especial após inúmeros pedidos de fãs; a plataforma também estreou recentemente uma nova geração de Gossip Girl, originalmente exibida entre 2007 e 2012. Já na Disney+, algumas das produções mais populares são lançamentos com personagens já conhecidos e amados: a série Loki e os filmes Viúva Negra e Cruella. Leonel explica que retomar personagens e histórias que já possuem um público cativo, além de ser uma aposta segura, pode ser também financeiramente interessante para estúdios. “O revival, especialmente, mira numa faixa de público que a pessoa cresceu na infância e adolescência consumindo ali aquela produção da época e hoje, 20, 15 anos depois, ela se tornou um adulto economicamente ativo, com poder de compra. E hoje, com o streaming, não precisa nem ir até o cinema”, diz. “A nostalgia chega a domicílio.”
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.