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Análise|Série de Hitler na Netflix falha em aprofundar ditador, mas desmonta fake news que duram até hoje

Em seis episódios, série documental ‘Hitler: O Começo, Meio e o Fim’ mostra como homens medíocres se tornaram assassinos

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Foto do author Marcos Candido
Série "Hitler" detalha passos do ditador ao poder Foto: Divulgação/Netflix

O objetivo primordial de Hitler: o começo, meio e o fim, série documental lançada pela Netflix, é o desmonte de mentiras. Em seis episódios, o diretor Joe Berlinger demonstra como uma sociedade pode colapsar diante da engenharia sofisticada da conspiração e do desespero. Os dois artifícios sustentaram a base da Alemanha hitlerista e estão presentes até hoje entre líderes autoritários, sejam ditatoriais ou eleitos democraticamente.

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Vemos como Hitler criou inimigos imaginários e prometia resgatar um passado glorioso e levá-lo adiante em um paralelo com o ex-presidente americano Donald Trump, sem precisar citá-lo. Os historiadores na série remontam slogans como “Tornar a Alemanha grande novamente” (“Make Germany Great Again”), frase que caracterizou a campanha de Trump, e também demonstram a máquina de notícias falsas criada pelo propagandista Joseph Goebbels.

Antes de Hitler chegar ao poder, a Alemanha vinha da Primeira Guerra Mundial com altos índices de desemprego, limitações militares impostas pelo Tratado de Versalhes e um ressentimento difuso explorado pelo grupo político nazista.

O diferencial da série é entrar na intimidade do jogo político que levou Hitler ao poder e, assim, desmentir de concepções sutis a mentiras deslavadas propagadas até hoje sobre o regime. Uma delas, de que Hitler seria de esquerda devido ao nome inicial do partido (“Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães”), uma tática adotada pelo ditador para enganar, recrutar desavisados e asfixiar o bolchevismo no país até Hitler acabar com toda e qualquer oposição política.

A principal é que a economia alemã viveu dias gloriosos com a chegada de Hitler ao poder. Os índices de desemprego despencaram, é verdade, mas os nazistas reconheciam que o conforto econômico era base fundamental para manter os alemães dispostos a defendê-los. Afinal, a porta de entrada nos sentimentos alemães havia sido a desigualdade causada após a Primeira Guerra Mundial e a desesperança decorrente do conflito terminado em 1918. Os nazistas, então, criaram clubes de férias, cruzeiros, julgaram supostos judeus terroristas e iniciaram grandes obras para aumentar a ideia de que as coisas estavam indo bem e os inimigos contidos. Muita gente dentro e fora da Alemanha caiu nessa - e cai até hoje.

Mas quando sobrava gogó e faltavam recursos para sustentar uma guerra e um país ao mesmo tempo, Hitler intensificou a expansão territorial para saquear, roubar e escravizar e baratear os custos para manter o sonhado império. Para isso, escravizou, assassinou, prendeu, tomou bens e saqueou judeus na Polônia, Tchecoslováquia, França e Áustria e os enviou para campos de concentração. A violência tinha mais um objetivo: manter na rédea e dar uma função aos Camisas Pardas, a base paramilitar mais sanguinária e fundamental para manter o princípio ideológico do Partido Nazista. A intenção era manter a aparente paz em casa.

A série mostra como o nazista não era um grande planejador econômico, como muitos ainda podem pensar. Hitler era um ladrão. Um ladrão sanguinário, avesso a burocracias, preguiçoso, vaidoso, megalomaníaco e mentiroso. Não era um grande gestor, nem um estrategista. Era um valentão que negociava com armas na mão, protegido por capangas e, principalmente, por oficiais que lhe puxavam o saco e estavam dispostos a matar, a roubar e a mentir por um punhado de poder e bajulação após viverem vidas medíocres. A contribuição de cada um deles atrás de uma fatia de atenção sustentou o autoritarismo que foi capaz de assassinar milhares de vítimas inocentes. É um recado: tudo isso aconteceu e pode acontecer de novo.

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Uma falha da série é tentar delinear um quadro psicológico mais a fundo de Hitler. O ditador tentou ser pintor, tentou ser um grande soldado, tentou ser militar, mas era ruim em tudo. Os episódios deixam a entender que as frustrações pessoais o incentivaram a uma espécie de vingança contra aqueles que o desprezaram. Isso não é justificativa. Todo ser humano lida com frustrações similares e não invade um país vizinho.

O defeito na trajetória, porém, é remediado com a demonstração de que as motivações monstruosas de Hitler, na verdade, eram ferramentas úteis para os negociadores políticos da época, que tentaram usar um pedacinho aqui e outro lá para se manterem poderosos e intactos.

Foi o caso Franz von Papen, vice-chanceler de Hitler que o defendeu na vida pública para se aproveitar da popularidade do líder em ascensão nos anos 30, como Joseph Stalin, interessado em dividir a Polônia, e até de pequenos dirigentes políticos menores que tentam surfar na capacidade de oratória do ditador para solidificar um grupo político até então insignificante que se reunia em bares para tomar cerveja.

O ódio antissemita, racista e homofóbico de Hitler foi executado sob a vista-grossa de um jogo político e econômico frios e permissivos no mundo todo, não apenas pelos sentimentos raivosos e ressentidos de um só homem.

Assista ao trailer de Hitler

Análise por Marcos Candido

É jornalista.

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