LOS ANGELES - As criaturas criadas pelo mestre do terror e da ficção científica H.P. Lovecraft estão por toda parte em Lovecraft Country, que estreia neste domingo, 16, às 22h, na HBO. Mas os verdadeiros monstros são as pessoas, como se vê logo no primeiro episódio da série criada por Misha Green, produzida por Jordan Peele e baseada no livro Território Lovecraft, de Matt Ruff.
Atticus (Jonathan Majors), seu tio George (Courtney B. Vance) e sua amiga Letitia (Jurnee Smolett) saem de Chicago rumo ao Sul dos Estados Unidos sob as leis de Jim Crow, de segregação racial, nos anos 1950. Estão à procura do desaparecido pai de Atticus, Montrose (Michael Kenneth Williams).
“Na verdade, quando as criaturas aparecem, dá até um alívio dos horrores que nós, seres humanos, fazemos uns aos outros”, disse Williams, conhecido por sua interpretação de Omar em The Wire, em entrevista ao Estadão. Courtney B. Vance acrescentou que não foi difícil se identificar com o horror vivido pelos personagens. “Nós negros aprendemos a lidar com os monstros que nos cercam. Muitas vezes eles não mostram suas verdadeiras faces.
"Lovecraft Country usa a criatividade e as armas de H.P. Lovecraft – terror, fantasia e ficção científica – para desmontar suas ideias racistas e preconceituosas. “É um grande debate a separação entre o artista e sua arte”, afirmou Jonathan Majors. “Aqui, o trabalho de Lovecraft está sendo reinterpretado por outros artistas. E é um tipo de tapa na cara dele porque estamos tornando sua obra mais relevante”, completou o ator.
Na série, em vez de morrerem na primeira oportunidade, como costuma ser o caso com os personagens negros nas obras de gênero, aqui eles são os heróis. Atticus, como seu famoso homônimo da literatura e do cinema (o romance O Sol É para Todos, de Harper Lee, que virou filme com Gregory Peck), também está lutando contra um sistema de opressão. “Usar o gênero torna a discussão sobre racismo e preconceito mais acessível”, contou Majors. “E também expande o gênero, porque temos um protagonista que não tem a aparência de John Carter. Temos um personagem negro e uma família negra passando pelas experiências da ficção científica e do terror.”
Jonathan Majors contou que quase teve de se beliscar para acreditar que Lovecraft Country, série de grande porte e cheia de efeitos visuais, ia sair do papel. E ainda pelas mãos de uma mulher. “É importante e obrigatório ter uma showrunner negra”, garantiu Aunjanue Ellis, que faz Hyppolita, a mulher do tio George. “Mas quero que, além da representação, tenhamos visionárias. E Misha Green é.”
A busca dos Freemans pelo passado da família é também uma procura pela história dos negros, que constantemente têm sua participação apagada. E, ainda, é o resgate da verdadeira história de um país. “Estamos retratando o pecado original da formação dos Estados Unidos”, lembrou Majors. “Nós falamos do legado da família Freeman, o que confere dignidade a um grupo de pessoas que historicamente foram marginalizadas e tratadas de forma desumana. A série corrige isso.”
Lovecraft Country não poderia chegar em melhor momento, quando os protestos pela morte de George Floyd nas mãos da polícia reacenderam os movimentos pelos direitos dos negros – e das minorias em geral – no mundo todo. Coincidentemente, a entrevista foi exatamente no dia do funeral do congressista John Lewis, um dos líderes da luta pelos direitos civis nos EUA. “Graças a Deus, muitas pessoas brancas estão começando a entender que os monstros estão em toda parte, sempre estiveram e não vão sumir”, disse Courtney B. Vance. “Com a pandemia, as pessoas estão sendo obrigadas a presenciar com o que lidamos há séculos. Estamos dizendo: Chega de bandeiras dos confederados ou de estátuas em memória dos seus heróis entre aspas. Chega de filas gigantes para votar nos bairros negros. Chega de um sistema de saúde que não funciona para não brancos. Isso não está certo. Por isso as eleições presidenciais são de vida ou morte. Nossos pais sofreram e sangraram, assim como seus pais. Agora é nossa vez.”
O terror de Lovecraft Country dá ao espectador a possibilidade de se colocar no lugar dos personagens, que são perseguidos pelas ruas de pequenas cidades ou acordam com uma cruz em chamas no jardim. “A empatia é imediata”, concluiu Aunjanue Ellis. O medo, afinal, é uma emoção universal. “Ele nos conecta”, ressaltou Majors. “Porque não é só a história dos Estados Unidos. A história do mundo é marcada por colonização, conquistas, imperialismo. Mas o espírito humano prevalece.”
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.