A economia mundial se esfarelando, o aquecimento global confirmando as verdades inconvenientes documentadas por Al Gore, e o pessoal desperdiçando tempo, energia, saliva e papel com o Caso Cesare Battisti. Aqui e na Itália. Parodiando Laura Antonelli, "Dio mio, come sono caduti in basso!" Nem a desculpa de que assuntos nacionais mais relevantes andavam em falta, lá e cá, pode ser invocada. Ou não serão mais relevantes os graves problemas econômicos, sociais e judiciais que tanto amesquinham a Itália neodireitista, a melancólica entrega dos destinos da política brasileira ao PMDB, a descoberta do castelo do corregedor Edmar Pereira, as chicanas racistas do governo Burlesconi, a recente criação de uma "Alcatraz para imigrantes" na mediterrânea ilha de Lampedusa? Não tenho competência para julgar Battisti. Antipático e arrogante, sim, mas culpado ou inocente do que o acusam, não. Nem eu nem a opinião pública. Nem o ministro Tarso Genro. Mas a ele, sem dúvida, cabe conceder ou não refúgio a um foragido da Justiça estrangeiro, pois a nossa Justiça não é menos soberana que a da Itália, cuja autoridade não foi entre nós contestada quando seus juízes negaram a extradição do banqueiro Salvatore Cacciola. O resto é uma questão de interpretação e valorização de um e outro aspecto das questões (legais, humanitárias, etc) em jogo. O ex-ministro do Interior da Itália nos anos 1970, o linha-dura Francesco Cosiga, considera os crimes de Battisti "de natureza política", mas nem por isso o absolve, alimentando a controvérsia: o terrorismo de natureza política merece tratamento diferenciado? Se não merece, por que o ex-terrorista Menahem Beguin, primeiro ministro de Israel de 1977 a 1983, pôde circular pelo mundo afora sem ser molestado? Como qualquer outra, a discussão em torno de Battisti é livre, mas perigosamente sujeita a contaminações ideológicas e oportunices demagógicas. E, acima de tudo, juridicamente inócua. O destino de Battisti não depende sequer do ministro Tarso Genro, mas do Supremo Tribunal Federal. E pelo que deu a entender o ministro Celso de Mello, nossa Corte Suprema poderá, na próxima semana, decidir pela deportação de Battisti. Para alívio do presidente Lula, que, com seu habitual otimismo, esperava que a inevitável crise provocada pela decisão do ministro Tarso Genro não passaria de uma marolinha diplomática. Mas o maremoto que alguns viram, tentaram criar ou aproveitar pro domo sua afinal não passou do que também na Itália chamam de tempestade em copo d?água; literalmente, "tempestà in un bicchiere d''acqua". Montaram um circo. Até Carla Bruni foi convocada ao picadeiro. Meteu-se no meio o amistoso da seleção brasileira contra a italiana, programado para esta terça-feira e por um triz não cancelado. Analistas e palpiteiros de variadas plumagens deram sua opinião, contra e a favor da extradição, eventualmente fazendo coro com a paranóica suspeita de que Battisti seja o cavalo de Tróia de uma ressurreição da luta armada, na Itália, na França (onde se refugiou, até virar moeda de troca do governo Chirac) e, desde o ano passado, na América Latina. Menos, pessoal. Li um monte de bobagens. Defensores de Battisti comparando-o a Dante, Galileu, Dreyfus, Olga Benário, ao casal Rosenberg, até aos perseguidos pelo macarthismo em Hollywood. Um parlamentar italiano invocando as origens nacionais do Direito Romano como prova inconteste da superioridade da Justiça de seu país. Jornalistas de peso, como Francesco Merlo, utilizando-se do sério La Repubblica para xingar o Brasil de "democracia de opereta", habitada por uma população quase simiesca, e sem sistema jurídico confiável, como se a Justiça italiana estivesse acima de qualquer suspeita e seu primeiro-ministro não fosse uma figura de ópera bufa. Há muito não assistia a tamanho show de histeria coletiva, rancor, obsessão vindicativa, pilantragem eleitoreira e xenofobia. Se igual auê tivesse sido feito pelos italianos quando o trambiqueiro e criminoso Licio Gelli foi julgado, ele hoje estaria num daqueles cárceres especiais para mafiosos e terroristas, não cumprindo pena em prisão domiciliar, numa luxuosa villa toscana. Por mais que se repise, com razão, que a Itália não é uma ditadura, há quem discorde da absoluta lisura de seu sistema judiciário e, depois do que se viu na reunião do G-8, em Gênova, da serenidade de sua polícia. Diversas leis foram alteradas entre 1974 e 1982 para "melhor combater" a montante terrorista, duas delas, pelo menos, violando a Constituição e até motivando protestos da Anistia Internacional. Segundo Patrizio Gonella, presidente da Antigone, instituição que luta pelos direitos humanos, "a Itália ficou famosa no exterior por uma legislação de emergência imposta durante os seus anos de chumbo, de 1968 ao início dos anos 80, com penas desproporcionais aos delitos cometidos". E é pesada a barra no "cárcere duro" reservado a mafiosos e terroristas. "No limite da tortura", na opinião da juíza federal americana D. D. Sitgraves. Não tenho, repito, competência para julgar Battisti, mas me incomoda o pouco caso que fizeram das pesquisas da arqueóloga, historiadora e escritora francesa Fred Vargas sobre os furos no processo que o condenou à prisão perpétua, das provas periciais da grafóloga Evelyne Marganne, levantando suspeitas sobre duas cartas incluídas nos autos, e da desqualificação (pelo Tribunal de Milão, em 1993) do arrependido terrorista Pietro Mutti, principal, se não única, testemunha contra Battisti. Mais do que tudo me incomodam os raios e trovões sobre o bicchiere d?acqua.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.