Para homenagear os 70 anos do escritor pernambucano Raimundo Carrero, completados no dia 20 de dezembro do ano passado, a Cepe Editora preparou a reedição em volume único, de luxo, da tetralogia Condenados à Vida, composto pelos romances Maçã Agreste (1989), Somos Pedras que se Consomem (1995), O Amor não tem Bons Sentimentos (2007) e Tangolomango (2013), com bela capa de Hallina Beltrão e designer caprichado da editora, além de ensaio crítico do jornalista José Castello sobre sua obra. Carrero, que já venceu o Prêmio São Paulo de Literatura em 2010 e o Jabuti (em 2000), participa da 16ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), dentro da programação da Casa do Desejo.
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Maça Agreste é o início da história da família Cavalcante do Rego, formada pelo patriarca Ernesto, a esposa Dolores, os filhos Raquel e Jeremias, e também por Leonardo, Guilhermina, Matheus, Ísis e Biba, entre diversos outros. É neste livro que nasce também o território mítico Arcassanta, que surgiu de forma inicial no romance As Sementes do Sol, ambientado na sertaneja cidade de Salgueiro, publicado no final da década de 1970, mas que passou para uma esfera urbana ao ser transferido para o centro do Recife.
As Sementes do Sol, inclusive, foi escrito como uma adaptação da história bíblica de Davi e Betsabé, surgindo portanto na obra de Carrero o tema da família punida por Deus, reforçado justamente na década de 1980 com os livros posteriores do autor. Nesse romance inicial da tetralogia vemos também a criação da seita Os Soldados da Pátria por Cristo, liderada por um depravado pastor, seguido por centenas de fiéis, uma severa crítica ao fanatismo religioso.
O livro seguinte, Somos Pedras que se Consomem, amplifica as tentações e as formas como a história é contada – por meio de poemas, notícias de jornal, diários e várias citações de autores nacionais e internacionais, que compõem uma intricada trama envolvendo Camila, Ísis, Sofia, Leonardo, Mateus, Biba, Raquel, Jeremias, Alvarenga e Siegfried, além de um estrangeiro que faz parte do jogo brutal, violento, sexual, sadomasoquista e criminoso que pretende “purificar” a humanidade, sendo ele mesmo um marginal confesso.
O Amor não tem Bons Sentimentos continua a saga da família, colocando foco no perturbado Mateus, ou Matheus (dependendo do estado mental dele), que estupra e mata a mãe e a irmã, tendo depois de lidar com a culpa e o sofrimento insuportável, dizendo em determinado momento: “Estou magoado com o mundo. Ninguém me ofendeu, ninguém me magoou, ninguém me maltratou. Mas estou magoado com o mundo”. No último livro da tetralogia, Tangolomango, acompanhamos Guilhermina, que aparece de forma discreta nos romances anteriores, mas reaparece para concretizar o ritual das paixões, como informa o subtítulo. Ela desde cedo mantém uma relação de amor, carinho e desejo sexual pelo sobrinho Matheus, acolhendo o rapaz depois do crime cometido por ele. Crueldade, aliás, responsável também pelo destino trágico dessa mulher, que começa o romance acompanhando o desfile do bloco de carnaval O Galo da Madrugada, dançando frevo e se despindo no meio da multidão, mesmo sendo uma pessoa triste e solitária.
Os quatro livros criam um romance insólito, de forte impacto, um compêndio da decadência humana com todos os personagens envolvidos. Em todos eles Carrero consegue exprimir as dores, as fragilidades e o desespero dos personagens, que são silenciosos e sombrios, com o verdadeiro barulho acontecendo dentro deles e explodindo para situações absurdas. A tetralogia pode ser lida como o retrato dissoluto da sociedade, sobretudo de uma elite fracassada, mostrando o quanto a humanidade é frágil e perversa na mesma medida. Esse conjunto de obras pode parecer “difícil” numa leitura desatenta, ou até mesmo inacessível para o leitor médio, por causa do tema supostamente desconfortável, que envolve estupro, incesto, prostituição, assassinato, lesbianismo, sadismo, mas também solidão e amor, tudo no mesmo pacote do declínio ético e moral de uma família em destruição. Mesmo assim, quando se entra nesse universo ficcional, é impossível parar de ler. “É a crítica corrosiva ao falso moralismo, à instituição familiar, à religião e à sociedade que vai permeando as psicoses, taras e idiossincrasias dos personagens, que vão se revelando, cada um à sua maneira, em um ambiente de assassinato, estupro e luxúria”, resume o autor.
Tudo é muito simbólico na prosa do pernambucano. E nada é por acaso. A maçã do primeiro título, por exemplo, representa de forma sutil a raiz do pecado original. A ruína da espécie. Quem mergulha na literatura de Raimundo Carrero não apenas sai transformado, mas transtornado com a realidade violenta e degradante que ele impõe aos seus personagens. A degradação que vemos todos os dias e que assombra ainda mais pelas linhas sempre corrosivas do autor, feitas substancialmente através da complexidade e loucura dos habitantes das suas histórias. Condenados à existência, eles precisam seguir, pois só dessa forma é possível continuar o mistério, tentando compreendê-lo. A tetralogia retrata justamente a busca incessante dos enigmas mais profundos do ser e do existir. A dualidade da condição humana através de uma família em queda livre para o abismo. *Ney Anderson é jornalista e editor do site de literatura 'Angústia Criadora'
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