À dor sem fim pelo assassinato de seu filho se soma a gratidão ao juiz que ofereceu justiça aos que sofrem: este o teor da carta de Zora ao magistrado que atuou em defesa da honra de Vladimir Herzog. Passados 45 anos de sua morte, no dia 25 de outubro de 1975, cumpre conhecer melhor a produção desse grande intelectual que se formou jornalista exercendo no Estadão seu estilo crítico. Colaborou na Cinemateca Brasileira; criou o documentário Marimbás, sobre homens que viviam de sobras da pesca; trabalhou na Rádio BBC em Londres; foi editor de cultura da revista Visão, responsável por importantes matérias sobre teatro, cinema, educação e televisão; lecionou na Faap e na Escola de Comunicação e Artes da USP; foi secretário de redação do jornal Hora da Notícia na TV Cultura; e planejou reestruturar os jornalísticos da emissora, conforme sua formação voltada para canais educativos.
Nascido na Iugoslávia em 1937, Herzog tinha quase quatro anos quando, bombardeada a casa vizinha pelos nazistas, seus pais fugiram com ele para a Itália. Em 1946, a família veio ao Brasil. O teatro e a Faculdade de Filosofia, que ele cursou na USP de 1958 a 1962, foram os caminhos para o jornalismo. Jovem, como Aldo ou Valdo Erzi, ele atuou no teatro amador; a colega Lélia Abramo o pôs em contato com Cláudio e Perseu Abramo, da editoria de O Estado de S. Paulo. Segundo outra versão, o professor de Filosofia Mário Leônidas Casanova o apresentou aos Abramo. A modéstia era uma das virtudes de Vlado, afirma Zora na referida carta. Integrada ao caráter e ao sentido de outridade de Herzog, que priorizava comunicar a importância ética da arte e da política, a modéstia se combinava com a prática jornalística do seu tempo no Estadão, de 1959 a 1963: era usual publicar sem assinatura, com a indicação “Do enviado especial”. Graças ao Acervo Estadão on-line e à agência Estado, que resgatou de seus registros os textos assim assinados que contaram com a autoria de Herzog, foi possível constituir a lista dos artigos dele, transcrevê-los e disponibilizá-los no Acervo Vladimir Herzog, www.acervovladimirherzog.org.br. Rico material, que inclui também textos publicados na Visão, cartas, fotos, o Acervo foi organizado graças ao apoio da família do jornalista, do Instituto Vladimir Herzog e do Itaú Cultural; com a coordenação de Luis Ludmer, Frederico Camargo e eu realizamos a pesquisa. Dos 52 textos de Vlado publicados no Estadão, 29 são reportagens sobre questões de economia e trabalho e sobre eventos políticos e culturais que ele acompanhou de outubro de 1959 a novembro de 1960. Entre os temas estão pesquisas sobre pesca, certamente retomadas em Marimbás. Ao cobrir a campanha de Jânio Quadros, Vlado atenta para a informalidade do político. Ao noticiar visitas do governador Carvalho Pinto a municípios de São Paulo, mostra problemas do estado e incentiva providências essenciais: o combate a doenças, a revisão agrária, a abertura de salas de aula e de estradas, o fornecimento de energia elétrica. Destaca-se a matéria sobre Sartre e Beauvoir no Brasil, que marcou o comprometimento de Vlado com a realidade brasileira.Combate às Endemias na Ilha do Bananal é exemplar de sua perspectiva crítica. Ao referir a visita do ministro da Saúde à Ilha do Bananal, aponta a falta de assistência médica para a população local, e denuncia a violação do patrimônio reservado ao Serviço de Proteção aos Índios, por espertalhões da especulação imobiliária.Um Dia da Vida na Cidade Nova apreende os contrastes naturais, sociais e psicológicos da festa de inauguração de Brasília. Metonimicamente, Herzog identifica no vestuário engomado os poderosos, que, todavia, assistiam ao mesmo espetáculo que milhares de pessoas. A grandiosidade pirotécnica convivia com “a poeira, a confusão, a precariedade dos meios de comunicação, os discursos laudatórios, repletos de vazio retórico”. Sucedem-se perguntas sobre o futuro de Brasília, sobressaindo sua personificação como uma criança, forma criativamente crítica de Herzog denunciar a sujeira, sinalizar a possibilidade de beleza e alertar para que se cuide da saúde do país. Os demais 23 textos, de 1962 a 63, voltam-se para as artes, vários saíram no Suplemento Literário. A cobertura do Festival de Mar del Plata foi caminho para ele se dedicar à crítica de cinema e ao jornalismo cultural. Leiam-se as entrevistas com Alida Valli, Rita Hayworth e François Truffaut, além de reflexões sobre o cinema brasileiro e a força do documentário social de Fernando Birri. Síntese da preocupação social e cultural de Herzog ressalta em Uma Questão de Fome: como a quase totalidade das crianças do meio rural jamais viu um filme e sequer pode estudar? Cumpre matar a fome das crianças: oferecer-lhes alimento, arte, educação. Sobressai, pois, o estilo claro e envolvente com que, apresentando dados objetivos e flagrando gestos e imagens poéticas, Vladimir Herzog articula em seus artigos pesquisa, observação e a comunicabilidade no sentido de ser útil para a formação da consciência social e estética, cultural do público, contra injustiças. *IEDA LEBENSZTAYN É CRÍTICA, AUTORA DE G’RACILIANO RAMOS E A NOVIDADE: O ASTRÔNOMO DO INFERNO E OS MENINOS IMPOSSÍVEIS’.