Os meses seguintes ao lançamento de Os Sertões, em 1902, testemunharam a meteórica ascensão de Euclides da Cunha ao panteão das letras nacionais. Tendo arrancado elogios de Araripe Jr., Silvio Romero e José Veríssimo, o autor seria eleito, já no ano seguinte, para as duas principais instituições de consagração intelectual do Brasil à época, a Academia Brasileira de Letras e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. No ambiente intelectual da virada do século 20, não é exatamente surpreendente a canonização precoce de uma obra pretensamente científica, adornada por uma profusão de imagens cuidadosamente estilizadas, e que procurava dar conta do mal-estar que atormentava a atmosfera moral da jovem república desde o massacre de Canudos (1897), que o autor testemunhara como correspondente do Estado.
A unanimidade, a bem dizer, era um tanto ilusória. Joaquim Nabuco, poucos dias depois de escrever a Euclides prometendo-lhe um voto para a ABL, escreveu em seu diário: “Quanto aos Sertões não pude. Não é o caso somente de empregar a expressão Les arbres empêchent de voir la forêt (as árvores nos impedem de ver a floresta): aqui a floresta impede também de ver as árvores. É um imenso cipoal; a pena do escritor parece-me mesmo um cipó dos mais rijos e dos mais enroscados.” Mesmo quando discordemos de Nabuco, talvez sua reação privada fosse mais autêntica do que os rasgados elogios que os críticos teciam em público. Com a irrelevância a que foram relegadas as explicações sociológicas de cunho racista e determinista que perpassam o livro (cujo manejo pelo autor é uma tônica da primeira fase da recepção de sua obra), restam hoje, a seu favor, a força desconcertante de sua prosa (às vezes repelente, como no caso de Nabuco) e a penetração de seu olhar sobre o povo brasileiro.
O leitor contemporâneo poderá estranhar, na obra de Euclides, a onipresença do estilo elevado, remanescente de convenções literárias neoclássicas, indistintamente aplicado a descrições geográficas, análises antropológicas e narrativas episódicas, mas sempre aliado a uma intensa preocupação em lançar sobre a realidade um olhar crítico e científico. Euclides oscilava, mesmo dentro dos limites de um mesmo texto, entre gêneros diversos. Mantinha-se, porém, sempre distante da prosa de ficção – embora seja frequente ceder-se à tentação enganosa de caracterizar sua obra maior como uma espécie de romance. Talvez devido ao caráter problemático e internamente contraditório de sua produção intelectual e literária, inconformável a soluções interpretativas simples, Euclides exerce um persistente fascínio sobre sucessivas gerações de leitores.
A recente publicação da coletânea Ensaios e Inéditos (Unesp, 2018) oferece uma oportunidade para a exploração dos fundamentos intelectuais e das engrenagens da escritura do autor, que neste ano será homenageado pela Flip. Organizado pelos pesquisadores Leopoldo Bernucci e Felipe Rissato, o volume reúne textos em prosa representativos da produção ensaística de Euclides. Resultado de cuidadoso trabalho de pesquisa e estabelecimento de texto, o livro conta com abundante aparato crítico, assegurando ao leitor o privilégio de observar em ação o apuro quase obsessivo com que Euclides lapidava seu inconfundível estilo. Além de um pequeno número de fragmentos estritamente inéditos, encontrados em arquivos no Brasil e no exterior, há um bom número de textos que haviam sido publicados em periódicos, mas que, sem reimpressão em livro, haviam se tornado praticamente inacessíveis. Mesmo nos textos já reunidos nas edições das Obras Completas, há diferenças importantes entre as versões, seja por estarem apresentadas, no presente volume, em esboços (com parágrafos inteiros faltantes ou excedentes da versão definitiva), seja pelos frequentes erros editoriais e tipográficos que prejudicam (às vezes seriamente) as primeiras edições dos livros de Euclides (sempre assinalados nas notas dos organizadores). Todos os textos que o leitor tem à mão são, portanto, de um modo ou de outro, inéditos.
Na primeira seção (Dispersos), que inclui desde um texto escrito por Euclides aos 17 anos até escritos de 1909, ano de sua morte, podemos acompanhar a evolução do pensamento e do estilo do autor ao longo de diversos pequenos ensaios. É aqui que se encontram os textos rigorosamente inéditos, dos quais até hoje não havia versão impressa (A Década..., O Último Bandeirante, Regatão Sagrado e Duas Páginas sobre Geologia). Neste último, esboço incompleto (perderam-se as primeiras páginas) e inacabado, vemos repetir-se em escala menor a façanha da primeira parte de Os Sertões, na qual a descrição geológica assume a grandeza de uma narrativa épica: “O mar por ali exercitou um assalto complexo cujas peripécias ficarão para todo o sempre ignoradas.” Por sorte, podemos deduzir o provável tema principal do texto, a história natural da Baía de Guanabara, a partir das referências às “linhas duras e vivas do Pão de Açúcar”, às “encostas clivosas da Boa Viagem” (ilha em Niterói), aos “perfis arredondados das ilhas do Mocanguê” e às “praias finamente rendilhadas e mansas de Paquetá”.
Na mesma seção, destaca-se o “preâmbulo” que Euclides escreveu ao livro de seu amigo Alberto Rangel, Inferno Verde (1908). Nesse pequeno e precioso ensaio, encontramos manifestações do gênio do autor na mais exuberante desenvoltura, como na explicação que fornece ante o fato de a Amazônia, cuja grandeza estimulava um ufanismo imaginoso, se apresentar, in loco, na forma de uma paisagem geralmente monótona e sem maiores atrativos: “Escapa-se nos, de todo, a enormidade que só se pode medir repartida; a amplitude, que se tem de diminuir, para avaliar-se, e o infinito, que se dosa, a pouco e pouco, indefinidamente” (num dos rascunhos, lemos a formulação alternativa, igualmente impactante, de uma “dosagem torturante do infinito”) – porque “a inteligência humana não suportaria, de golpe, o peso daquela realidade portentosa”.
Percebe-se, no mesmo texto, a mestria do estilo de Euclides, pela força das imagens que ele deixa de lado – aqui somos especialmente recompensados ao consultar os trechos cortados e as notas lançadas à margem e no verso dos manuscritos, oferecidas no rodapé: “rio d’águas pardas, atropelado pelos escarpamentos, na História corre com águas avermelhadas de sangue entre os clarões dos incêndios”, “a mata revestia-se de luto, num crepe pesado”, “oiranas ralas e tristes, como cílios à borda duma pupila que fosse dilatada e cega”, “a mata – tem o aspecto de parar porque sentiu que lhe embargavam o passo”, “parece que toda ela luta consigo mesma, ao mesmo tempo conflagrada e parada”. Não deparamos aqui com expedientes puramente retóricos: curiosamente, é o materialismo extremado que dará a suas descrições paisagísticas o sabor de um extemporâneo animismo, como ele próprio parece reconhecer: na Amazônia, “as cousas mais objetivas revestem-se de uma anômala personalidade”; nas suas “paisagens volúveis”, adivinham-se “caprichos de misteriosas vontades”.
Nas três seções restantes da coletânea, encontramos esboços para livros publicados ou organizados ainda durante a vida do autor. De Contrastes e Confrontos, cujos escritos tratam de temas variados, desde expedições britânicas ao Himalaia até a “vida das estátuas”, há pelo menos um texto excepcional: um breve ensaio sobre Floriano Peixoto. O esboço que lemos na coletânea traz narrativas de testemunho ocular do autor sobre a madrugada de 15 de novembro de 1889 (excluídas da versão final), além de traçar um retrato do “marechal de ferro” que revela procedimentos caracterológicos próximos daqueles empregados na antológica descrição de Antônio Conselheiro. Em Peru versus Bolívia (esboço para livro de mesmo título), vemos Euclides no exercício da função que desempenhou no Itamaraty: o levantamento e apresentação de informações pertinentes à resolução de litígios territoriais.
A última seção é composta por três esboços do último livro do autor, publicado postumamente, À Margem da História. De especial interesse é o rascunho para o primeiro capítulo, que reproduz o plano de exposição de Os Sertões (Preliminares – Baixada Amazônica: História da Terra e do Homem) – título descartado na versão que foi ao prelo, em favor de outro, mais impactante e revelador de uma reformulação de argumento: Terra Sem História. Nessa inflexão temos um caso exemplar dos sugestivos paradoxos que animam a obra de Euclides. Às margens da história, o homem é função da natureza e da terra.
É assim que, à revelia das intenções de Euclides, metafísicas telúricas, vegetais, ameaçam a jaula de ciência dentro da qual se esperava aprisionar e sistematizar a realidade, enroscando-se em suas barras metálicas e entortando-as com a superior indiferença de enormes cipoais que a encontrassem, perdida, em densa floresta.*ANDRÉ MARTINS É HISTORIADOR E TRADUTOR
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