Tolstoi faz autoficção em 'Infância, Adolescência, Juventude'

Autor russo revê sua vida em novelas compiladas em um único volume

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Por Paulo Nogueira

Há o epigrama manjado de Italo Calvino: “Clássico é aquele livro que todo mundo queria ter lido, mas ninguém quer ler.” Ora, hoje esse aforismo parece caducar. No mundo inteiro, editoras apostam em coleções de obras universais, com prefácios fresquinhos, capas carismáticas e preços convidativos (clássicos não pagam direitos de autor).

+Tolstoi narra conflito entre cristãos e muçulmanos no Cáucaso 

O escritor russo Liev Tolstoi, autor de 'Infância, Adolescência, Juventude' (Todavia) 

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+'Uma Confissão', de Tolstoi, apresenta profissão de fé do escritor

Os próprios consumidores estariam se reciclando, enjoados da demanda mercadológica pelo “próxima coqueluche literária”. Quem ganha é o leitor, com a edição de títulos há muito esgotados ou mesmo inéditos, e em novas e melhores traduções, muitas delas da língua original. É o caso de Infância, Adolescência, Juventude, de Liev Tolstoi, pela editora Todavia. 

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Tolstoi, que nasceu em 1828, foi uma figuraça. Aristocrata por parte de pai e de mãe, com o título de conde, membro da classe governante num país onde vigorava a forma de escravidão chamada servidão. Homens, mulheres e crianças estavam atrelados por lei à terra que cultivavam. Quando foi abolida, em 1861, algumas famílias nobres detinham mais de 200 mil servos. Por esse critério, os Tolstoi não eram plutocratas, mas o escritor não podia chorar de barriga cheia: herdou a fazenda de Iasnaia Poliana, com 4 mil acres e 330 servos, 5 governantas e 15 criados, além de um haras com 400 cavalos. Tolstoi se pavoneava da sua linhagem – uma das suas inúmeras incongruências. O próprio Turgueniev, que babava um omelete inteiro pelo autor de Ana Karenina, resmungou: “Não consigo entender esse esnobismo dele por causa da droga de um título de nobreza.” 

Entalada no absolutismo antediluviano do Czarismo (Czar, assim como Kaiser, vem de César) a intelligentsia russa se debatia entre os eslavófilos e os ocidentalistas (o livro a ler é Russian Thinkers, de Isaiah Berlin). Os primeiros postulavam a primazia do ethos russo, hierático, rural e monárquico, contra o racionalismo laico, modernizante e democrático dos segundos. Nenhum dos grandes escritores russos foi exclusivamente carne ou peixe, combinando em doses diferentes aquelas duas antinomias. Mas todos (o que podia ser fatal, e com autores menores realmente foi) tendiam a encarar a literatura como mais que meramente... literária. E impingir uma propaganda, seja do que for, é o caminho mais curto para arruinar uma obra, ao reduzir personagens a fantoches de doutrinas, em vez de apresentá-los como prismáticos e contraditórios. O resultado é quase sempre o maniqueísmo. Tolstoi escapou por um triz. 

Ele próprio era um vórtice de contradições. Para começar, angustiava-o seu fogoso desejo sexual. Como entrega o ouro esta passagem de Juventude: “Perambulava por todos os cômodos da casa, em especial pelo corredor dos quartos das criadas.” Como Marx, Tolstoi teve um filho com uma empregada que nunca reconheceu. Misógino que só, grunhia que as mulheres eram avatares da “sedutora Eva”. Ele e Sofia Bers constituem um dos piores (e mais bem documentados) casamentos da história. Ela teve 13 filhos em 22 anos, fora os abortos involuntários. Uma das últimas obras de Tolstoi, Sonata de Kreutzer, é sobre um marido que mata a esposa. Depois de excluir Sofia dos seus direitos autorais, o escritor fugiu de casa aos 82, para morrer na estação ferroviária de Astapovo, em 1910.

Há muito que Tolstoi tinha virado um guru global, e Iasnaia Poliana um santuário para pacifistas, desertores, doentes, veganos, birutas. Na maior parte da vida, ele não estava escrevendo ficção, mas fazendo outras coisas que considerava mais relevantes. Em 1879, ocorreu a sua chamada conversão a um cristianismo primitivo e ao socialismo agrário, em que o fervor místico se aliava a glorificação dos camponeses. No quase cavernícola O Que É A Arte?, anatematizou o esteticismo, e condenou inúmeros autores aclamados, a começar por si mesmo. Vestiu-se como um lavrador, deixou a barba druídica roçar o umbigo, insistiu em ser chamado de “Leon”, libertou seus servos e tentou alfabetizá-los – o que os ingratos encararam com profunda desconfiança. 

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Foi excomungado pela igreja Ortodoxa e até hoje não reabilitado. Embora a Rússia czarista cortasse muitos ensaios de Tolstoi, nunca o molestou. Os soviéticos toleraram as obras dele, não obstante sua rejeição do marxismo e da revolução como meio de transformação social. Num texto brilhante, George Orwell explica as ferozes críticas de um Tolstoi já ancião a Rei Lear, de Shakespeare, pelo fato de o escritor russo se reconhecer, sem tirar nem pôr, no arrogante e egoísta monarca da peça. 

A trilogia Infância, Adolescência, Juventude é aquilo que hoje, apregoando uma modernidade velhinha em folha, alguns designam por “autoficção”. Tolstoi iniciou-a aos 23 anos, no Cáucaso, durante uma experiência militar. O primeiro volume foi um sucesso – Dostoievski, então no exílio siberiano, comoveu-se e quis conhecer o autor (nunca rolou). As duas outras partes foram escritas em São Petersburgo. A trilogia relata, na primeira pessoa, três períodos da vida de Nicolas Petrovich (Nikolenka), alter ego do autor, que também perdeu mãe e pai precocemente. A influência de Rousseau é evidente, seja na idealização da infância (as crianças são os bons selvagens, pestinhas edênicos), seja numa sinceridade aparente, mas que esconde pelo menos tanto quanto desvenda. 

No fim da vida, Tolstoi releu a trilogia, antes de escrever suas Reminiscências, e renegou as duas últimas partes, por suas “tendências democráticas”. Felizmente, era tarde demais – ele já legara aquele tesouro à posteridade. E, afinal de contas, a arte dele brotava precisamente daquelas contradições agônicas, dilacerantes. Era um mártir hedonista.

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Mas, para mal dos seus pecados, era também um artista nato. Sabia tudo de tudo: da guerra e das corridas de cavalo, das duquesas e das prostitutas, das catedrais e dos bordéis, de Moscou e da Sibéria. Parafraseando Terêncio, nada do que é humano lhe era estranho, e nada mais estranho que a humanidade (neste capítulo, só Shakespeare se ombreia). Suas descrições – de pessoas ou lugares – são incomparáveis, de vivacidade arrebatadora e doçura sem pieguice, iguarias verbais que saciam mas nunca empanturram. 

Quando Tolstoi resolveu escrever Ana Karenina, já era um dinossauro reacionário, e seu objetivo consistia em estigmatizar a mulher adúltera. Só que o artista falou mais alto que o moralista. Reescreveu o livro pelo menos sete vezes, e a protagonista foi se transfigurando de uma sirigaita bocó numa criatura poliédrica e trágica – a sinfonia prevaleceu sobre o veredicto. Daí que, como já Infância, Adolescência, Juventude atesta, Tolstoi podia ser um profeta fajuto, mas era um gênio ficcional. Há obras mais inteligentes que seus autores. *É autor de 'O Amor é um Lugar Comum' (Intermeios) 

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