No ensaio intitulado Tolstoi: Antiarte e Rebeldia, o professor e tradutor ucraniano radicado no Brasil Boris Schnaiderman (1917-2016) nos apresenta Khadji-Murát (Editora 34, 264 páginas, R$ 55), pequena obra-prima que o russo Lev Tolstoi (1828-1910) escreveu entre 1894 e 1905. Ficamos sabendo, assim, que a vida e a obra de Tolstoi são perpassadas pelo duelo encarniçado entre o artista e o doutrinador religioso.
A partir da reinterpretação dos evangelhos, Tolstoi funda uma nova religião tendo como base o questionamento das doutrinas oficiais – daí sua excomunhão da Igreja Ortodoxa Russa em 1901 –, a negação do status quo, o profundo desprendimento material, a transformação moral e a não violência. Sempre em busca de um sentido para a vida, Tolstoi luta contra o aristocrata usurpador em si mesmo para (tentar) vivenciar aquilo que ele entrevia como o teor de verdade do Sermão da Montanha de Cristo: o amor ao próximo.
Contemporâneo de Tolstoi, é como se Fiodor Dostoievski (1821-1881) extraísse um aforismo fundamental de seu romance Os Irmãos Karamazov (1879-80) para exprimir o dilema existencial de Tolstoi: “Deus e o diabo estão em luta, e o campo de batalha é o coração do homem.”
Boris Schnaiderman nos revela que, para Tolstoi, “o doutrinador deveria vir em primeiro lugar. Em seus diários, Tolstoi trata a literatura como algo a que não podia escapar e que o seduzia. É verdade que o doutrinador está presente nas obras literárias, mas sua presença é suficientemente discreta para não prejudicar a realização. Ao mesmo tempo, a candente problemática dos temas tolstoianos e o pathos de suas preocupações morais imprimiam vibração e intensidade ao texto literário.”
Em Khadji-Murát, ainda segundo Boris Schnaiderman, encontramos “a continuada reflexão de Tolstoi sobre a história e o problema do poder e da violência”. Em meio ao Cáucaso convulsionado por guerras étnico-religiosas entre cristãos e muçulmanos, entramos em contato com momentos cruciais da vida do comandante regional Khadji-Murát, rebelde que já lutara ao lado do Imam Chamil (1797-1871), chefe caucasiano que, a partir de 1834, moveu uma guerra aos russos durante 25 anos. Quando o narrador nos apresenta Khadji-Murát, o combatente se debandara para o lado dos russos. A princípio, imaginamos que Murát traíra Chamil pela vontade de poder, pois o (suposto) desertor já “imaginava como avançaria contra Chamil à frente do exército que [o comandante russo] Vorontzóv lhe daria e como o faria prisioneiro; depois, o Czar russo iria premiá-lo, e ele governaria não só a Avaria, mas toda a Chechênia por ele submetida”, como narra um trecho do livro. Logo descobrimos que, em meio às disputas de poder, Chamil aprisionara os familiares de Khadji-Murát – daí a guinada do rebelde em direção aos cristãos e daí o ímpeto por vendeta. Exímio conhecedor das contradições humanas, Tolstoi entrevê o altar da jihad (guerra santa) soerguido pela natureza profana dos homens.
Panoramicamente, eis os marcos narrativos de Khadji-Murát. Ocorre que, junto com o fluxo da estória, o breve romance parece desvelar um afã tolstoiano por cenários e costumes típicos do Cáucaso, afã que, encadeado poeticamente à narrativa, chega a conferir estatura ontológica às descrições, como se a natureza e a cultura do Cáucaso fossem elevadas à condição de personagens.
É assim que “margaridas insolentes” se esgueiram entre “malmequeres brancos e jeitosos, de pólen amarelo vivo”; é assim que “doía olhar para o aço das baionetas e para o brilho, semelhante a pequenos sóis, que aparecia subitamente sobre o bronze dos canhões”; é assim que a “fragrância orvalhada da noite de lua” ressoa “o canto e o silvo de alguns rouxinóis, vindos do jardim pegado à casa”; é assim que a lembrança do avô de Khadji-Murát, “de rosto enrugado e barbicha grisalha”, o obriga a proferir as orações diárias com suas “mãos de veias intumescidas”.
Em Khadji-Murát, a sobreposição vertiginosa de descrições-personagens como que transforma o foco narrativo em tomadas fílmicas – não à toa, Boris Schnaiderman nos revela que o cineasta russo Serguei Eisenstein (1898-1948) apreendeu germes de narrativa cinematográfica em meio à pulsão imagética de Tolstoi.
Em um breve preâmbulo a Khadji-Murát, o narrador nos diz que tentara colocar uma bardana de haste rija e fibrosa no centro de um ramalhete com as mais belas flores do Cáucaso. A bardana resistiu vigorosamente à subjugação e, quando seu caule finalmente se partiu, a flor murchou sua beleza como um ato derradeiro de liberdade.
Ao fim da estória, o narrador retoma a imagem da bardana indômita como uma metáfora para o destino de Khadji-Murát, cuja vida premida entre a dominação russa, a guerra santa e a vendeta pelos entes queridos o transforma em uma personagem trágica, para quem, ainda que a morte seja certa e iminente, é preciso fazer o elogio do próprio naufrágio.
*Flávio Ricardo Vassoler é doutor em letras pela Universidade de São Paulo, com estágio doutoral junto à Northwestern University (EUA)
Khadji-Murát Autor: Lev TolstoiTradução: Boris SchnaidermanEditora: 34 264 páginas R$ 55
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