Talvez não seja um exagero afirmar que, logo após a 2.ª Guerra Mundial, os judeus podiam ser descritos como um povo quase que exclusivamente formado por órfãos. Aharon Appelfeld, Wladyzlaw Szpilman e Elie Wiesel são exemplos de pessoas cujos pais – e uma parte imensurável deles próprios – acabaram engolidos pela noite trevosa e interminável do Holocausto. Passados quase 70 anos desde o término da guerra e do subsequente estabelecimento do Estado de Israel, a leitura de Fora do Tempo, de David Grossman, oferece o contrário: um povo constituído por muitos pais que perderam e continuam perdendo seus filhos. É importante lembrar que o próprio Grossman, desgraçadamente, é um desses pais: no dia 12 de agosto de 2006, seu filho mais novo, Uri, soldado israelense, foi morto em combate no Sul do Líbano. Por aqueles dias, o autor trabalhava no romance A Mulher Foge, no qual a protagonista, temendo ou pressentindo que a qualquer momento baterão à sua porta e lhe informarão sobre a morte do filho combatente, foge de casa e, incomunicável, passa a vagar pelo Norte de Israel. A pungência desse relato ficcional acabou sublinhada ou, melhor dizendo, ressignificada pela realidade mais aterradora, isto é, a morte do filho de Grossman. Daí não ser por acaso que o alegórico Fora do Tempo, livro seguinte do escritor, seja uma expressão possível do luto ou, antes, a busca por uma maneira não só de expressá-lo, mas, também, de renascer – inclusive literariamente – de dentro dele, encarnando uma espécie de “feto pós-maturo” concebido senão pela tragédia. Os pais como filhos dos filhos que perderam, ou da dor intrínseca à perda. A forma híbrida de Fora do Tempo ecoa essa busca por uma expressão possível do luto, esse tatear. A estrutura é similar à de um drama, com longas passagens em versos, tudo a princípio filtrado pela figura do Anotador dos Anais da Cidade. Obedecendo a uma ordem do Duque, ele procura registrar as dores dos outros habitantes e, por omissão, a sua própria. São todos pais enlutados, devastados pela ausência, pelo abismo deixado pelos que se foram. Dentre eles, há o homem que, no início da narrativa, comunica à esposa a sua decisão de ir ao encontro do filho. Não de se matar, percebam, mas de peregrinar circularmente, ao redor da cidade, até que o morto se disponha a encontrá-lo numa zona fronteiriça, “entre aqui e lá”. O fato de que esse primeiro caminhante e os que, depois, passam a acompanhá-lo andem em círculos diz muito da própria natureza do que eles experimentam: “(...) O luto / se faz veterano, antigo / com os anos, e tem dias que é novo, / fresco”. Portanto, não se trata de um esforço no sentido de uma qualquer “superação”, mas de, estando vivos, traçar essa topografia da desolação, encontrando palavras que os reconectem de alguma forma aos que partiram e, sobretudo, a si próprios e aos demais. A palavra engendra o movimento e vice-versa, uma coisa servindo de combustível para a outra. Da mesma forma como uma voz chama outra voz, um passo sucede outro, e Grossman coloca na boca de um personagem que a língua desse luto é a poesia, e que ambos só podem ser plenamente vividos e compreendidos se nos colocarmos em movimento. Metade homem, metade escrivaninha, é o Centauro quem, por sua vez, enuncia não ser “capaz de compreender algo enquanto não escrever”. Não seria senão esse o esforço do próprio Grossman. Nas falas do Centauro, e até porque não é possível a ele juntar-se à peregrinação, é perceptível o apego à palavra e ao movimento, ou à palavra como uma maneira de não ficar parado: “Só assim eu posso, de algum jeito, me aproximar dele, desse isso, maldito seja, sem morrer disso, percebe? Tenho de me mover à sua frente, me deslocar, não ficar petrificado como um rato diante de uma serpente!”. Para não restar assim, petrificado, ele precisa escrever. Ao dar, na medida do possível e do suportável, expressão ao luto, o Centauro e os demais personagens reinvestem-se de significação. A dor que eles sentem deixa de ser gratuita na medida em que é tangenciada, percorrida e nomeada. Em resumo, os personagens de Fora do Tempo saem à procura do “fogo”, isto é, das palavras, as únicas capazes de queimar, de “carbonizar lembranças” e, no limite, de inverter a própria roda do tempo de tal forma a propiciar o renascimento deles a partir das entranhas do próprio luto. Aos que ficaram, só resta recorrer a esse caráter inadvertidamente uterino da morte. E, para tanto, é necessário mergulhar nela, perder-se em seu meio, caminhá-la até compreender que o sentido, se é que existe, está nisso, no caminhar. Logo, é fácil perceber por que a evocação de gestos e acontecimentos corriqueiros, como a sopa sendo servida, o vapor que cobre a vidraça da janela, a mão que se estende para agarrar um pedaço de pão, o olhar lançado para o dia lá fora, sugere que o alento para a dor encontra-se na própria dor. ANDRÉ DE LEONES é escritor, autor do romance 'Dentes Negros' (Rocco), entre outros trabalhos.
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