Por que e como ler, hoje, antigas tragédias gregas? Dois lançamentos recentes podem fornecer exemplarmente, a seus leitores, respostas a tais questões: trata-se de duas novas traduções de obras de Sófocles (495-406 a.C.), realizadas pelo helenista Jaa Torrano, acompanhadas de estudos do tradutor e de Beatriz de Paoli.
Ájax e As traquínias, apresentadas em bem cuidadas edições bilíngues, permitem apreciar as tragédias como “máquina de pensar tanto a condição mortal quanto os limites inerentes ao exercício do poder no horizonte da democracia ateniense”, no dizer do tradutor no texto de abertura de Ájax, no qual também se refere ao modo de compreensão do mundo próprio da cultura grega antiga: a reflexão política das tragédias se dá por meio do pensamento mítico, que opera “unicamente com imagens, antes da invenção da abstração e do conceito”; tais imagens, usadas nos casos particulares das obras trágicas, adquirem sentido universal por meio de sua associação com a noção mítica de Deuses.
Embora muito distante de nosso modo de entendimento do mundo, pode atingir-nos profundamente a maneira como o modo trágico de reflexão revela a instabilidade da vida humana, bem como os limites de seu conhecimento.
A afirmação da imprevisibilidade da vida dos “mortais” perpassa ambas as tragédias, que, de modos distintos, dialogam com a antiga sentença segundo a qual “não se pode dizer da vida de alguém se é feliz, ou não, antes que tenha morrido”. Em Ájax, o herói que lutara na guerra de Tróia, irado com o fato de não ter sido escolhido como o herdeiro das armas de Aquiles, aparece num estado que Odisseu (merecedor do legado do “melhor dos aqueus” e, por isso, objeto de ódio de Ájax) chama de “erronia” (áte) – “o desvario de quem não reconhece a situação em que se encontra e age em detrimento de seus próprios interesses”. Determinado a matar e torturar os juízes que não o escolheram (os reis atridas, Agamêmnon – chefe das tropas gregas na guerra de Troia –, e seu irmão Menelau, marido de Helena), assim como Odisseu, perde a noção de realidade por obra da deusa Atena e, em vez de seus inimigos, mata vacas, ovelhas e pastores. Ao presenciar, por meio de Atena, a situação de desvario de Ájax, diz Odisseu: “[...] apiedo-me dele / na infeliz situação, ainda que seja inimigo, / porque está subjugado a maligna erronia, / [...]/ Eu vejo que todos nós os vivos não somos / nada mais do que imagens e leve sombra.” Na resposta de Atena, ouve-se que “[...] o dia derruba e outra vez reergue / tudo que é humano.”
Ao tomar consciência da “sangrenta tormenta” em que se encontra, Ájax dirige-se ao Coro – que resistia a crer no que o herói havia feito – pedindo que o matassem: “só a ti, só a ti entre os pastores / contemplo para me defender, / eia, mata-me tu agora mesmo!”; e lamenta, depois, a sua sorte: “Ó má sorte minha, que das mãos / deixei escapar os imperdoáveis / e ao atacar os curvicórnios bois / e o buliçoso rebanho caprino / derramei o sombrio sangue.” A tragédia caminha para a morte autoimposta pelo herói desonrado e desesperançado – “Nenhum valor eu daria ao mortal / que se aqueça com vãs esperanças, / mas bem viver ou bem morrer deve / o bem-nascido” – que se dá por meio de uma espada por ele fixada ao solo: “Fincada nesta terra de Trôade inimiga, / recém-afiada com lima voraz de ferro, / após bem cuidar do redor, eu a finquei / apta a este varão com pressa de morrer.”
Os atridas tentam interditar os funerais de Ájax, por eles odiado; Odisseu, no entanto, persuade Agamêmnon a admitir os funerais, apoiado em “noções de reverência aos deuses, justiça e honra”, solucionando o impasse, embora perdurem os ódios.
O coro, depois, “reconhece a inata sabedoria de Odisseu”. Nas palavras de Jaa Torrano, contrapõem-se na tragédia “duas atitudes possíveis aos mortais na proximidade da Deusa Atena: a de Ájax e a de Odisseu. Uma é inviável e se verifica insustentável” para os mortais implicados nela; a outra é “inteiramente viável” e benéfica aos mortais por ela afetados.
As Traquínias desenvolve-se em torno do retorno de Héracles (Hércules, para os latinos) a sua casa; assim como em Agamêmnon, de Ésquilo (também uma tragédia de retorno), o guerreiro é assassinado por sua esposa. Dejanira, mulher de Héracles, e seus filhos encontram-se exilados em Tráquis, após quinze meses de ausência do marido, que concluíra os trabalhos a ele impostos; aguarda, com angústia, o seu regresso. Antes de partir, Héracles lhe deixara um vaticínio por ele obtido: ou concluiria sua vida ou, se vencesse sua luta, viveria bem daí em diante. Afirma-se, porém, a “instabilidade da vida dos mortais e a imprevisibilidade do porvir”; diz o coro a Dejanira: “[...]não deves / perder boa esperança / pois o todo poderoso / rei Crônida não fez / indolores os mortais / mas a dor e a alegria / se revezam em todos / tais quais os cursos / circulares da Ursa.”
Mas a profecia é dúbia, tal como se espera dos ditos oraculares: Héracles – assim como Dejanira – interpreta erroneamente o oráculo por ele recebido, e não percebe que viver uma vida livre de aflições significaria sua morte. Esta se dá por um engano de Dejanira, que, ao saber que Héracles voltaria ao lar trazendo consigo outra moça, a cativa Íole (filha do rei da Ecália, que ele saqueara movido por Eros) decide enviar-lhe, como presente, uma túnica ungida com o sangue do centauro Nesso, que a aconselhara a fazer isso para assegurar a exclusividade do amor do marido.
Na verdade, tratava-se de um ardil do centauro – a túnica adere à pele de Héracles que, vítima de dores atrozes e convulsões, é levado à sua terra ainda vivo, mas decidido a morrer para livrar-se do suplício; pede, então, a seu filho Hilo que erga, no cimo do monte Eta, uma pira em que fosse cremado vivo. Depois de fazer-lhe um novo pedido – que ele despose Íole (“Nenhum outro varão em vez de ti / tome a que se deitou a meu lado, / mas tem tu mesmo, filho, esse leito”) –, incita-o a dar a ele a morte almejada: “[...] dá-me outra / graça rápido, ó filho, põe-me na pira / antes de sobrevir espasmo ou furor. / Apressai-vos, levai-me! Eis o repouso / dos males, o último termo deste varão.”
À parte a riqueza e a densidade dos breves estudos contidos nos dois volumes, as traduções ora apresentadas permitem uma sensação de proximidade com as tragédias: frutos da já longa e profícua história de intimidade com a língua e a literatura gregas vivida pelo também professor, poeta e ensaísta Jaa Torrano, as recriações em questão (cuja força pode ser, espero, vislumbrada pelos poucos excertos transcritos neste artigo) alcançam os objetivos do tradutor, expressos no texto “Método Histórico em Tradução de Tragédia”, que abre As Traquínias. Nele, Torrano formula que seu método tradutório corresponde, em seu âmbito, àquele empregado por Tucídides (431-404 a.C.) em seu registro da Guerra do Peloponeso, que envolvia a noção de “acribia” (exatidão) referida pelo historiador ao expor o método para realizar sua investigação, na qual buscava o nexo aparente e necessário “que nos discursos [relativos às situações descritas] entrelaça o falante, sua fala, suas circunstâncias e seus ouvintes”.
De modo análogo, Torrano busca a acribia na tradução de tragédia, que se comprovaria na cooperação entre autor e leitor; para ele, “o nexo aparente e necessário que o tradutor deve reconstituir e reconstruir na tradução é a própria forma inteligível da tragédia”. Por meio dessa forma inteligível (que envolve, entre outras, as relações entre as funções sintáticas das palavras e entre essas e os elementos sensíveis que as afetam, como paronomásias, aliterações e ritmo), “o leitor pode contemplar por si mesmo o nexo aparente e necessário que unifica e significa a tragédia traduzida e se tornar contemporâneo dos valores e referências da tragédia”.
Autor: Sófocles
Título: Ájax
Tradução: Jaa Torrano
Estudos: Beatriz de Paoli e Jaa Torrano
Edição bilíngue
Coleção Clássicos Comentados
Ateliê Editorial / Editora Mnema
184 páginas
R$ 79,00
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Autor: Sófocles
Título: As Traquínias
Tradução: Jaa Torrano
Estudos: Beatriz de Paoli e Jaa Torrano
Edição bilíngue
Coleção Clássicos Comentados
Ateliê Editorial / Editora Mnema
168 páginas
R$ 79,00
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