Desde Recusa do NãoLugar (Ubu, 2018), o filósofo e escritor Juliano Pessanha passou por uma transformação interna: sua narrativa, sustentada sobre o niilismo, passou a buscar espaços de enraizamento. O guia desta nova jornada é o filósofo contemporâneo alemão Peter Sloterdijk, sobretudo sua trilogia das esferas. Nesse mesmo caminho, Juliano acaba de trazer à tona pela editora Todavia seu primeiro romance: O Filósofo no Porta-luvas. Clara narrativa de desconstrução do protagonista, Frederico é atravessado pelo vazio. Procura construir um modo de existência radicalmente distinto dos demais. Para tanto, é acompanhado pelo mentor Gregório. Este, ao estipular uma cisão radical entre singularidade e vida prática, acaba por conduzir o protagonista ao limiar da destituição e da destruição de si, sem nenhum lastro com o real.
O mergulho no abismo encontra um limite nada místico. O vazio não revela o Nirvana, mas a casca oca da mera subsistência: o protagonista em uma casa cheia de goteiras lutando contra um rato gordo na cozinha. A queda livre é certa. A desconstrução do mito da singularidade confere ao protagonista uma nova epifania: a descoberta do senso comum e da vida comum. Juliano propõe uma desconstrução visceral das filosofias da negatividade a partir de dentro e em direção ao puro interior da esferologia. Acena para a possibilidade de uma experiência transicional que não anule a dor ou suprima o vazio, mas que os reposicione dentro do vasto horizonte das ressonâncias anímicas. A voz corrosiva é semelhante às das outras obras de Juliano. Aqui, entretanto, as superfícies perfuradas não se resumem à carapaça da falação cotidiana, dos gafanhotos da linguagem e dos estetas do acabamento do mundo. Perfura os órgãos em uma nova espessura. Não se trata mais da idealização do abandono do ser lançado na finitização. Não estamos mais diante do naufrágio de todo ente diante do nada que desvela o ser. Lemos aqui as consequências devastadoras desse naufrágio para quem não se propôs fazê-lo com os botes salva-vidas da culturalização e com os barquinhos de papel do establishment. O ser rachado e a fenda aberta no humano deixam de ser uma categoria ôntica. Passam a ser literalmente o corpo ciborgue de Frederico-Juliano entre cirurgias, atravessado de próteses, stents e metabolizado pelo fluxo de dezenas de comprimidos.
Levada a seus limite, a profecia dos mistagogos da negatividade realiza enfim seu desvelamento final. O projeto de desentificação do ser conduz a filosofia a seu cume: o porta-luvas de um táxi. A avatar autenticidade se reduz ao taxista dissolvida na cadeia produtiva. Um Buda que tenta despertar da sinusite. Nesse limiar de derrelicção (corrosão) e de apófase (nadidade), o reverso mesmo do negativo se revela como promessa. A expectação não é mais pelo último-deus heideggeriano. É por encontrar enfim um espaço de acolhida. A singularidade enfim dissolvida na inautenticidade do ser-comum paradoxalmente racha o ser-diferido. Torna-o permeável ao amor e ao toque.
Nesse sentido, a estratégia narrativa da duplicidade do narrador é perfeita para criar essa nova topologia. Em vez da relacionalidade e da facticidade dos camaleões-vazios do ser-aí, emerge a relacionalidade coimplicada do ser-com: os camaleões-multicoloridos. A díade relacional Frederico-Juliano se converte em transicionalidade. Como se a devastação anterior, mesmo negada, fosse neutralizada em suas aporias. As ontologias do peso abrem abismos no mundo. Rasgam o sujeito e trituram seus cacos. Mas não conseguem descrever as nuances e sutilezas da infinita diferenciação dos seres. Dois momentos importantes. O primeiro é a aparição (metaficcional) para Frederico do poeta Renato Rezende. Renato, na Trilogia da Fantasia – Amarração (2011), Caroço (2012) e Auréola (2013) –, fornece ao protagonista as três etapas de uma catábase-queda e a promessa de uma anábase-ascensão. O segundo é a aparição (metaficcional) do próprio Juliano, que espelha Frederico. A fratura não cauterizada não leva ao esmaecimento da vida. Conduz a vida ao imperativo de viver nos limiares do interior-exterior de esferas habitadas e a abandonar o ventre negativo da extimidade. Vemos aqui a transição da díade Frederico-Juliano para a esfera-bolha Frederico-Luna, a cachorrinha cega a quem o livro é dedicado in memoriam. Essa nova topontologia diádica desbravada por Juliano é um aceno para uma nova ontologia: a ontologia da leveza. Ela se inscreve nas espumas flutuantes do colapso global de todas os sistemas de imunização que vivemos no presente
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