A romancista turca Elif Shafak já criticou o presidente Recep Tayyip Erdogan com tanta veemência que ninguém ousaria questionar sua coragem política. Em seus ensaios e entrevistas, ela denunciou a alarmante queda de sua terra natal no autoritarismo e, em troca, Shafak e seu marido, o jornalista Eyup Can, foram alvos de intimidação por parte de Erdogan.
É surpreendente e encorajador que tal violência patrocinada pelo Estado não tenha feito nada para diminuir a criatividade artística de Shafak nem sua fé no poder de contar histórias.
Seu último romance, The Island of Missing Trees, nos leva a Chipre, uma terra de “praias douradas, águas azuis, céus luminosos” e conflitos assustadores. Em 1974, dois adolescentes – um garoto grego chamado Kostas e uma garota turca chamada Defne – arriscam enfrentar a condenação dos pais e se encontram secretamente à noite. Desesperados para evitar os olhares indiscretos dos vizinhos fofoqueiros, Kostas e Defne encontram refúgio no quarto dos fundos de uma taverna de propriedade de dois homens que sabem muito bem o que é perseguir um romance proibido.
A taverna se chama Figueira Feliz e é, de fato, um oásis de alegria. “Aqui se compartilham histórias de triunfos e sofrimentos”, escreve Shafak, “relatos de longa data, mistos de risos e lágrimas, de confissões e promessas, de pecados e segredos”. Enclausurados nos fundos da Figueira Feliz, Kostas e Defne fazem juras um ao outro, sem saber dos problemas que se assomam no horizonte. “Você não deve se apaixonar em Chipre no verão de 1974”, alerta Shafak. “E, mesmo assim, lá estavam eles, os dois”.
Leitores americanos não familiarizados com a tumultuada história de Chipre irão apreciar a maneira como Shafak graciosamente se debruça nos detalhes da violência que varreu a ilha na segunda metade do século 20. Mas este não é um romance sobre os cataclismos que remodelam as nações: é um romance que conta como esses desastres reformularam vidas comuns.
Assim como Chipre, The Island of Missing Trees é marcado pela invasão militar turca em 1974. Kostas é mandado à Inglaterra na esperança de salvar sua vida, Defne fica para trás e vê sua terra natal em chamas. Os jovens amantes não sabem se voltarão a se encontrar, mas o tempo parece responder a essa pergunta. Separados por três mil quilômetros, eles descobrem que superar a diferença entre suas culturas é a parte mais fácil. “Sempre que algo terrível acontece a um país”, escreve Shafak, “abre-se um abismo entre os que partem e os que ficam”.
Capítulo a capítulo, o livro avança e retrocede por várias décadas, resolvendo alguns mistérios e levantando outros. Os momentos de Kostas quando jovem em Chipre surgem entre as cenas de sua vida como botânico de sucesso no Reino Unido, onde ele cria uma filha adolescente. Ela está ansiosa para saber mais sobre suas origens, mas seu pai reluta em falar sobre o passado. Determinada a entender as pessoas e as circunstâncias que lhe deram uma vida na Inglaterra, ela insiste em fazer perguntas a qualquer um que possa lhe responder qualquer coisa.
The Island of Missing Trees não é apenas um romance construído com inteligência; é uma reflexão explícita sobre a maneira como se constroem as histórias, como se cria o significado, como a devoção persiste. Sem jogar os leitores num matagal de confusão – não se preocupe, cada capítulo está datado com clareza – Shafak nos envolve na tarefa de reunir esses eventos. “Na vida real”, ela escreve, “as histórias não nos chegam em sua totalidade, mas sim aos pedaços, segmentos quebradiços, ecos parciais, uma frase completa aqui, um fragmento ali, uma pista escondida no meio. Na vida, ao contrário dos livros, temos de tecer nossas histórias com fios tão finos quanto as veias que correm pelas asas de uma borboleta”.
Mas Shafak está pensando em algo mais estranho do que simplesmente reunir eventos díspares ao longo de quarenta anos. A narradora que abre este romance é uma figueira – uma figueira extraordinariamente falante. Relembrando sua vida passada em Chipre, a figueira diz: “Fugi daquele lugar a bordo de um avião, dentro de uma mala feita de couro preto e macio, para nunca mais voltar”. Agora muda crescendo mais uma vez sob os cuidados de Kostas num jardim inglês, a figueira é nossa testemunha secreta. “A árvore é uma guardiã da memória”, lembra-nos. “Emaranhados sob nossas raízes, escondidos dentro de nossos troncos, estão os tendões da história, as ruínas de guerras que ninguém chegou a vencer, os ossos dos desaparecidos”.
Com a melancólica sabedoria de uma imigrante, esta figueira loquaz ouve as confissões dos enlutados e relembra as alegrias e horrores do que aconteceu durante aqueles anos tormentosos em sua terra natal. “Ouço com atenção”, diz a árvore, “e acho espantoso que as árvores, apenas por sua presença, se tornem uma salvadora para os oprimidos, um símbolo de sofrimento para as pessoas de lados opostos”.
A figueira não é a única narradora – partes do romance são contadas do ponto de vista tradicional da terceira pessoa – mas a perspectiva arbórea é enxertada diretamente no tronco da história. Sim, é um conceito estranho, particularmente extravagante para um romance que explora um material tão doloroso, mas, vindo de Shafak, não chega a ser surpreendente. Como autora, ela é aquela rara alquimista que consegue misturar grãos de tragédia e deleite sem diminuir o sabor de nenhum dos dois. Os resultados às vezes podem parecer surreais, mas essa técnica permite que ela capture os eventos impossivelmente estranhos da vida real.
Perto do fim, a preciosa árvore de Kostas nos diz: “Se é amor que você busca, se é amor o que você perdeu, venha para a figueira, sempre a figueira”. Este romance oferece o mesmo convite – e a mesma recompensa. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
The Island of Missing Trees
Autor: Elif Shafak
Editora Bloomsbury
354 páginas, US $27
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