Análise | Uma princesa diante da fragilidade humana e nós, plebeus, confrontados com nossa própria mortalidade

O câncer de Kate Middleton levanta questões como verdade oficial e verdades provisórias, o direito à privacidade em um mundo exibicionista e o medo que é dela, mas também nosso; leia análise

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Por Sérgio Telles
Atualização:

Não causam surpresa as especulações despertadas pelo estado de saúde de Kate Middleton, mulher do Príncipe William da Inglaterra, após sua cirurgia e desaparecimento do espaço público que ocupava.

Frente à crescente curiosidade popular, o Palácio de Buckingham tentou afirmar que estava tudo bem, divulgando uma foto com a sorridente Kate cercada de seus também sorridentes filhos. Mas logo verificou-se que tal foto fora retocada, era uma contrafação forjada. Frente ao vexame, o palácio foi forçado a se retratar e a finalmente revelar a “verdade” – seu câncer e os pedidos para que fosse respeitada sua “privacidade”.

Esse acontecimento levanta algumas questões.

Verdade oficial e verdade provisória

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A primeira é a da “verdade” apregoada nos depoimentos “oficiais”. Ingenuamente o público pensa que as informações que lhe são fornecidas com a chancela do poder vigente são verídicas e merecem crédito total. Ignora ele que, na maioria das vezes, o que lhe é oferecido não é necessariamente a “verdade”, mesmo porque configurar o que seja “verdade” é um problema de magna complexidade filosófica.

O que ele recebe como tal é apenas o que atende circunstancialmente a suas exigências e aos interesses dos detentores do poder. Como ilustra o caso de Kate, o Palácio, ao ser pressionado, dá uma falsa informação. Somente ao ser pego em flagrante mentira, entrega uma “verdade” provisória, ad hoc.

Foto postada pelo Palácio de Kensington foi retirada do ar por diversas agências de notícias após sinais de manipulação; Kate confirmou que a foto foi editada e pediu desculpas Foto: Reprodução X/@KensingtonRoyal

Direito à privacidade

A segunda diz respeito à “privacidade”. Vivemos numa sociedade em que os limites entre o público e o privado são muito tênues. Celebridades de diferentes matizes e calibres se exibem deliberadamente ao olhar público, alimentando o imaginário coletivo, que as vê como pessoas idealizadas ou demonizadas, sobre as quais são feitas projeções que ajudam o simples mortal a levar sua pobre vidinha, longe das paragens olímpicas onde supostamente vivem aqueles privilegiados.

Mais recentemente, mirando-se no exemplo dessas figuras, as pessoas comuns passaram a se expor com semelhante desembaraço, o que foi possibilitado pela tecnologia digital e as redes sociais, em que cada pessoa se transformou num cronista social de si mesmo, publicando fotos e dando notícias de suas andanças e feitos, por mais modestos e constrangedores que sejam.

Entre as celebridades, a família real britânica sempre ocupou um lugar especial. A doença grave de Kate, futura rainha da Inglaterra, transcende a esfera pessoal e tem reflexos na política. Assim, a cobrança por informações sobre seu estado não se configura como uma quebra da privacidade.

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É legítimo que o público inglês (e não apenas) exija informações fidedignas, assim como é necessário fazer uma discriminação entre essa exigência de divulgação e a dimensão íntima e familiar do drama, que deve, este sim, ser respeitado e resguardado.

Kate Middleton durante pronunciamento em que revela estar com câncer Foto: eprodução/X/KensingtonRoyal

De qualquer forma, é paradoxal a busca por “privacidade” num mundo em que o exibicionismo ostensivo é a norma, compatível que é com a sociedade do espetáculo descrita por Guy Debord.

A morte no centro do palco

A terceira questão, talvez a mais importante, se evidencia na já mencionada forma atabalhoada com a qual o Palácio de Buckingham lidou com a doença de Kate. É que ela, a doença, traz a presença da morte para o centro do palco, tirando-a dos bastidores, para onde ela é costumeiramente enxotada.

Não é de bom tom falar de doenças e mortes. São assuntos evitados de maneira geral, quer seja na mídia – tomada pelo entretenimento e estímulo ao consumo – quer seja nas relações sociais. Ela só é tolerada nas relações pessoais mais intimas e próximas.

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Um bom exemplo literário é Mrs Dolloway, personagem de Virginia Woolf, que fica chocada quando um convidado menciona “morte”, palavra aziaga que poderia estragar definitivamente sua festa, introduzindo o mau agouro em sua casa.

Kate – mulher bonita, jovem, situada no topo do mundo, para quem parecia garantido um futuro de crescente glória e poder - repentinamente se depara com a inquietante majestade da morte, que a confronta com a limitação e a fragilidade humanas.

Esperemos que, nesse combate, as forças da vida prevaleçam e Kate saia vitoriosa. Mas o fato é que, assustados, somos forçados a lembrar que o que acontece com Kate – esse encontro fatal - pode acontecer, vai acontecer com todos nós. “Tu és pó e ao pó voltarás”. Duras e belas palavras que devíamos não esquecer e, sim, ter como a mais importante bússola para nos orientar na vida.

Análise por Sérgio Telles

Psicanalista e escritor, autor de vários livros, entre eles 'Peregrinação ao Père Lachaise' e 'Visitas às Casas de Freud e Outras Viagens'

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