A publicação de A Curva do Sonho, da norte-americana Ursula K. Le Guin (1929-2018), pela editora Morro Branco – que promete lançar em breve The Word for World is Forest e outras obras da autora –, corrige uma grave lacuna nas prateleiras brasileiras, uma vez que ela, ainda pouco conhecida por aqui, já é festejada como parte da tradição literária dos EUA. Não por acaso, o próximo livro de um dos maiores críticos da atualidade, Harold Bloom, a ser lançado em outubro, se chamará The American Canon: Literary Genius from Emerson to Le Guin (O Cânone Americano: O Gênio Literário desde Emerson até Le Guin, em tradução livre).
A Curva do Sonho narra o drama de George Orr, um sujeito atormentado pelo mundo onírico e que acaba enfrentando problemas com a Justiça ao ser flagrado abusando de drogas para suprimir os próprios sonhos. Para escapar da prisão pelo uso indevido dessas substâncias químicas, ele é obrigado a se tratar com o renomado psiquiatra William Haber, um especialista no sono, que tenta a princípio compreender o que o deixa tão temeroso a respeito de seus delírios noturnos, a ponto de evitar dormir.
Quem resume a premissa do livro é o próprio Orr, quando busca a ajuda de uma advogada depois de uma consulta: “Se eu contasse que alguns dos meus sonhos exercem certa influência sobre a realidade e que o dr. Haber descobriu isso e está usando... esse meu talento para fins pessoais, sem meu consentimento... a senhorita acharia que sou maluco. Não acharia?”
Quando Orr adormece, o objeto de seu sonho não apenas se torna realidade – para todas as pessoas ao seu redor, aquilo sempre foi a realidade. O dilema de Orr foi enunciado pelo mito da caverna de Platão: a loucura compartilhada é preferível à lucidez solitária? Se apenas ele sabe que a atual realidade não é verdadeira (ou é?), mas proveniente de seus sonhos, como comprovar a própria sanidade perante os outros?
O capítulo que retrata a primeira consulta de Orr renderia um conto excelente. Ao fim da sessão, em que o dr. Haber faz seu paciente dormir e sugere por hipnose um sonho relaxante com cavalos, o retrato do Monte Hook em seu consultório se transforma em uma pintura de cavalos. Fica a dúvida se o psiquiatra está ou não consciente dessa metamorfose – essa ambiguidade permeia todo o livro, assim como a questão acerca da verdadeira natureza da realidade.
O protagonista se torna um refém de seu psiquiatra: não pode abandonar a terapia sob pena de prisão, tampouco controla os próprios sonhos e não tem como se defender das sugestões hipnóticas do dr. Haber, que começa a usar voluntariamente o mundo onírico para alterar a realidade. O psiquiatra acredita estar fazendo o bem ao erradicar a superpopulação, amenizar os efeitos das mudanças climáticas e transformar a si próprio em um cientista mundialmente famoso. No entanto, Orr discorda de sua visão utilitarista e suas soluções no mínimo questionáveis para problemas como o racismo.
A Curva do Sonho lida com uma variação do Dilema do Bonde, proposto em 1967 pela filósofa Philippa Foot (sobre alterar o curso de um bonde para salvar cinco pedestres e matar um). Isso fica explícito em um diálogo entre paciente e psiquiatra: “Você está sozinho na selva, no Mato Grosso, e encontra uma mulher nativa deitada na trilha morrendo por picada de cobra. Você se detém porque ‘é assim mesmo’?”, indaga Haber. “Se a reencarnação existir, posso estar impedindo que ela tenha uma vida melhor e condenando-a a uma vida miserável. Talvez eu a cure e ela vá para casa e assassine seis pessoas”, justifica-se Orr.
Em suas Seis Propostas para o Próximo Milênio, o escritor italiano Italo Calvino (1923-1985) afirma que a personagem-título do conto Rip Van Winkle (1819), de Washington Irving (1783-1859), conquistou o status de mito fundador para nossa sociedade contemporânea, em constante mutação. Nessa narrativa, que influenciou de forma decisiva a histórias sobre viagens no tempo, o protagonista adormece antes da Guerra de Independência dos Estados Unidos e acorda duas décadas mais tarde, em um país irreconhecível. Para Calvino, esse conto representa “uma alegoria do tempo narrativo, de sua incomensurabilidade com relação ao tempo real. E pode-se reconhecer o mesmo significado na operação inversa, ou seja, na dilatação do tempo pela proliferação de uma história em outra, que é uma característica da novelística oriental.” Isso também poderia ser dito a respeito de A Curva do Sonho, uma vez que a própria realidade inerente ao romance se desdobra em outras, como um caleidoscópio onírico. Quem nos ajuda a compreender isso é J.R.R. Tolkien: “Um único sonho é mais poderoso do que mil realidades.”
Orr é como a Sheherazade das Mil e Uma Noites, mas em vez de elaborar histórias é obrigado a sonhar dia após dia para concretizar os planos megalomaníacos do dr. Haber, que assume a posição do rei Xariar. Como o deus védico Vishnu, que sonha o universo, Orr tem em seus sonhos a matéria-prima da realidade. E como Rip Van Winkle, ele sempre acorda em um mundo diferente daquele que habitava quando foi dormir – uma metáfora que se torna assustadoramente atual à medida que os avanços tecnológicos transformam o cotidiano mais rápida e profundamente.
Afinal, o equívoco de Orr – e o mérito de Le Guin – é não compreender que os sonhos, assim como a arte, são indissociáveis da realidade. Ou como Neil Gaiman já escreveu: “As pessoas acham que sonhos não são reais só porque não são feitos de matéria, partículas. Sonhos são reais. Mas são feitos de pontos de vista, imagens, memórias, piadas e esperanças perdidas.”
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