A primeira impressão que tem o visitante da exposição Nem Totem, Nem Tabu, na Galeria Almeida e Dale, é de que a história do pintor modernista Vicente do Rego Monteiro (1899-1970) só foi contada pela metade até hoje. Os historiadores se ocupam muito do seu formalismo art déco e se esquecem da importância que teve para ele a descoberta da cultura indígena, que o reaproximou do Brasil sem que fosse preciso passar por um ritual antropofágico, como recomendavam os mentores do movimento modernista, responsáveis pela Semana de Arte de 1922. Dela o artista participou com dez obras, confiadas ao amigo Ronald de Carvalho (o pernambucano morava em Paris).
Rego Monteiro, segundo a curadora da mostra, Denise Mattar, não ligou a mínima para a Semana de Arte Moderna. Estava mais interessado em desenvolver uma técnica que unisse a estilização formal do art déco ao mundo mítico dos índios brasileiros, tema de uma exposição que havia feito um ano antes (1921) no Teatro Trianon. Nela, o pintor apresentou peças de temática indígena, baseadas em lendas que traduziu para o francês, disposto a ensinar aos europeus a riqueza de um mundo considerado “primitivo”.
Essa aproximação com o universo indígena rendeu a maior descoberta de Rego Monteiro e também dissabores. Em 1928, o escritor Oswald de Andrade convidou o pintor a integrar o seu movimento antropófago. Rego Monteiro recusou o convite. “Oswald tinha uma proposta revolucionária em mente, mas o indianismo de Rego Monteiro nunca atravessou a fronteira estética”, observa a curadora da exposição, que aponta até mesmo o conservadorismo do pintor modernista como uma das causas do isolamento do artista quando este decidiu voltar ao Brasil. “Ele dirigiu uma revista monarquista e nacionalista chamada Fronteiras, em 1933, na qual propôs a queima em praça pública de Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, seu amigo na juventude.” Rego Monteiro não era bom na política como na arte. Apoiou descaradamente o regime ditatorial de Vargas, mas salvou-o a poesia – sua casa, nos anos 1940, virou ponto de reunião de jovens poetas, entre eles João Cabral de Melo Neto.
É claro que todas essas relações (Freyre, João Cabral) foram essenciais para a redescoberta da terra por um pintor (que começou escultor) formado na França, vendo os Ballets Russes (ele foi dançarino de aluguel) e se integrando ao círculo dos escultores gêmeos Jan e Jöel Martel (1896-1966). “A grande virada na carreira de Rego Monteiro se dá entre 1923 e 1925, quando liga o estilo art déco à arte marajoara brasileira”, observa a curadora Denise Mattar, apontando um dos trabalhos na mostra que revela essa conexão.
A exposição tem obras de quase todas as fases de Rego Monteiro, que estudou na Académie Julian, em 1911 e, aos 13 anos, participou do Salão dos Independentes, em Paris. Há desde o retrato de uma senhora vestida de preto (1922) que remete às pinturas do japonês Foujita, amigo de Matisse e Picasso, até os santos brecheretianos que pinta em 1970. Brecheret, afinal foi seu amigo e dividia com ele certo gosto pela fragmentação cubista, como provam várias obras expostas. Mulher Diante do Espelho (1928), reproduzida nesta página, é um exemplo dessa sua tendência.
Entre obras as mais raras, claro, estão as derivadas de sua pesquisa marajoara. Três delas integram a mostra e pertencem à coleção Airton Queirós de Fortaleza. Outras, da época da Semana de 1922, mostram claramente a aproximação de Rego Monteiro com os costumes indígenas, um desenho que tem como protagonista um canibal com duas cabeças presas à cintura e a aquarela A Rede do Amor Culpado (1921), que mostra um casal de índios na rede. Ao lado de pinturas com temas laicos figuram obras religiosas realizadas na mesma época, como Fuga para o Egito (1924). Nessa mesma década ele passou pelo surrealismo. “Ele foi, enfim, um artista contraditório”, resume a curadora Denise Mattar.
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