Em meados de 1926, o jornal alemão Frankfurter Zeitung propôs ao escritor judeu de origem ucraniana Joseph Roth (1894-1939) uma viagem à União Soviética. Narrados com lirismo e ímpeto crítico, os relatos compilados em Viagem na Rússia revelam que, em grande medida, “as tochas da revolução” já não estavam acesas. Para a construção do novo mundo, “agora se acendem os bons, ordeiros e bem comportados lampiões”. Ainda assim, as impressões poéticas do autor – embaladas pelo entusiasmo revolucionário de outrora – mostram que “a locomotiva russa não apita, ela uiva como uma sirene de navio, ampla, animada e oceanicamente. Quando se vê a noite molhada e se ouve a locomotiva pela janela, é como à beira-mar.”
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Para tentar estimular a economia soviética devastada por longos anos de guerra civil que contrapuseram as forças revolucionárias, à frente das quais marchava o Exército Vermelho, aos russos brancos, constituídos por um amálgama sumamente heterogêneo de partidários do czar e defensores do governo constitucional instaurado em fevereiro de 1917, tropas inglesas e francesas, checas e polonesas, estadunidenses e japonesas, o líder bolchevique Vladimir Lenin (1870-1924) implementou, no início da década de 1920, a Nova Política Econômica (NEP, em russo), que retomou elementos da economia de mercado, tais como a permissão para pequenas explorações agrícolas, industriais e comerciais à iniciativa privada, admitindo-se, inclusive, o aporte de investimentos estrangeiros. Lenin concebia a NEP como um recuo tático, algo como um passo atrás para dar dois passos à frente.
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É assim que, em Moscou, Roth depara-se com um novo burguês russo, o qual, “graças às condescendências da revolução, pode fazer negócios e sabe contornar suas restrições. Eis o ‘homem da NEP’, expressão que tem um tom degradante no país todo e além das fronteiras. Ele não se deixa encantar por nenhuma concepção de mundo e difere claramente do velho burguês e do proletariado. Serão necessárias algumas décadas ainda para que tenha suas formas, tradições e mentiras convencionais apropriadas, se permanecer vivo”. Quando pensamos que, pouco depois da viagem, Stalin amealha o poder, decreta o fim da NEP e dá início a um regime de perseguições, expurgos e assassinatos políticos que transformaria a URSS em um Estado totalitário, as previsões históricas do escritor se revelam radicalmente trágicas.
Ao singrar o rio Volga a bordo de um barco a vapor, Roth entrevê a persistência da luta de classes e da alienação social nas distinções e privilégios que o navio reserva a alguns passageiros afortunados e na ausência de consciência política dos garçons. Segundo o autor, os funcionários já eram garçons “quando os vapores tinham nomes de grão-príncipes [à época do czar. Agora que o navio tem o nome de um líder bolchevique,] uma gorjeta provoca em seus rostos aquela expressão servil de respeito que faz esquecer toda a revolução.” Com a memória da fome terrível que levou os russos à barbárie do canibalismo – data dessa época o chiste infame de que “comunistas comem criancinhas” –, o escritor nos revela que o desespero das pessoas as faziam “morder as próprias mãos até feri-las, para que então pudessem beber o próprio sangue”. Quando nos lembramos de que, para Georges Clemenceau (1841-1929), primeiro-ministro francês à época, era preciso delimitar um “cordão sanitário” para impedir o espraiamento da epidemia comunista, descobrimos entre os poderosos e bem alimentados membros da alta civilização ocidental os cúmplices da barbárie.
Vale frisar, por fim, outra apreensão de Roth que torna mais complexa e contraditória a divisão estanque do mundo entre capitalistas e socialistas pela então vindoura guerra fria. Segundo Roth, os soviéticos “desdenham a ‘América’, ou seja, o grande capitalismo sem alma, o país em que o ouro é Deus”. No entanto, relata que só se ouve pela URSS o mantra “tratores e civilização, máquinas, livros de ABC e rádio!” Ficamos sabendo, ademais, que, para a ideologia/propaganda revolucionária, “as grandes conquistas culturais da Europa e da Rússia, tais como a antiguidade clássica, a poesia eslavófila, a Renascença e Dostoievski, são burguesas e reacionárias.” Assim, o desejo pela perfeita tecnologia de produção aliado ao filisteísmo (anti-)intelectual estava levando a URSS a uma “adaptação inconsciente ao espírito americano”. É como se, diante da tristeza pela descoberta de que a utopia estava cultivando o cidadão medíocre, o antidogmatismo de Joseph Roth entrevisse afinidades eletivas entre Lenin e Donald Trump. *Flávio Ricardo Vassoler é doutor em letras pela USP, com pós-doutorado em literatura Russa na Northwestern University (EUA)
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