Quase todos os amigos que se interessam por analisar a política, inclusive os mais pernas de pau, como eu, que quase tudo que sei é que impedimento não é a mesma coisa que “impeachment”, estão discutindo nossa política à luz da Copa. Não é um acaso. Durante o jogo do Brasil com a Alemanha, veio-me uma intuição: não há atividade humana que ilustre tão bem a tese de Maquiavel sobre a virtù e a fortuna quanto o futebol. Explico-me.
Para Maquiavel, metade de nossas ações é governada pela fortuna, metade pela virtù. A fortuna é fácil de entender: é o acaso, a sorte, favorável ou desfavorável. Já a virtù, palavra que vem do latim “vir”, varão, designa o agir propriamente viril, varonil, ou seja, tudo que vem de uma deliberação madura e atenta de como agir. Assim, metade do que vivemos se deve à sorte ou azar, à fortuna ou infortúnio, e a outra metade tentamos, a duras penas, que resulte de nosso empenho, de nossa tentativa de pôr ordem - nossa ordem - na bagunça do mundo.
A tarefa humana, e sobretudo a do governante (que Maquiavel expõe em O Príncipe), é vencer e ganhar. Mas, nisso, esbarramos no inesperado, no imponderável. Assim, o Brasil se desenvolve, o que implica maior consumo de energia e d’água. E vem um ano de seca, totalmente fora dos padrões! Isso afeta o abastecimento de energia, responsabilidade do governo federal, e de água, que é do estadual. No meio do planejamento, que é virtù, mete-se a fortuna, a atrapalhá-lo. Claro, pode-se aprender com a lição - aumentando-se a oferta de energia, melhorando a gestão da água. Ou: um de nós quer trocar de carro, faz contas, separa economias e de repente adoece. Ou ainda, saindo dos casos de infortúnio para passar aos de boa fortuna, alguém perde um emprego; não encontra nova colocação; uma noite vai jantar em casa dos amigos, conhece uma pessoa que lhe fala de novos rumos e descobre uma nova vocação. Dei exemplos radicais, mas isso nos acontece todo dia. Somos bafejados pela sorte ou azar e fazemos nossos cálculos: aí estão fortuna e virtù; e esses dois pelejam o tempo todo; o que conseguimos é uma mescla, sempre instável, de um e outro.
Que tem o futebol a ver com isso? Tudo. Raro objeto é tão esquivo, tão elusivo quanto a bola. Ela quica, numa adaptação curiosa do inglês kick, que significa usar o pé ou pés para chutar (palavra que, por sua vez, vem do inglês shoot). Mas vejam a mudança: to kick descreve uma ação do jogador, enquanto “quicar” se refere ao movimento da bola. O jogador chuta, numa reação elaborada ao longo de anos de treino e luta, para acertar a meta. Já a bola “bate e volta”, como explica o Houaiss no verbete “quicar”, afetada pelo gramado, o vento, sabe-se o que mais. To kick é virtù. Quicar é fortuna. Do inglês ao português, passamos da ação deliberada, com um sujeito que planeja, para o azar do objeto, que adquire vida própria, furtando-se ao que o jogador almejava.
As mãos são melhores, para imprimir movimentos seguros, do que os pés. Com a mão sintonizamos melhor direção e distância. O pé é mais forte, sim, mas chutar é uma arte difícil. Jogar com maestria usando os pés é uma proeza. Um esporte com os pés provavelmente exige mais do que se usasse as mãos. Por isso, quando um país adota o futebol como esporte de sua identidade nacional, quando o mundo o eleva a modalidade esportiva dominante, país e mundo escolhem uma tarefa, uma missão mais difícil, mais nobre: talhar um membro para a atividade à qual não é o mais adequado, alçar pela dificuldade os membros inferiores a uma condição superior. O mundo vira de cabeça para baixo, o pé domina, como naqueles mapas quatrocentistas em que o Sul está acima e o Norte, abaixo. É como o orador ateniense Demóstenes, que venceu a gagueira, não facilitando, mas dificultando seus exercícios: para agravar o desafio, ele enchia de pedrinhas a boca. O futebol, além de lidar com variáveis sobre as quais o controle é por princípio impossível (as da fortuna), dificulta aquilo que seria mais passível de planejamento e deliberação - usando os pés em vez das mãos. Acentua a fortuna, para exigir mais da virtù.
“Meter os pés pelas mãos” é uma expressão corrente nossa, para indicar o máximo da inabilidade. Não é fascinante que os brasileiros queiram ser hábeis usando os pés e não as mãos? A ambição é alta. Ainda mais porque, pelo menos até hoje, quando se pensa no país mais identificado ao futebol, se elege o Brasil. Que de propósito escolhe o difícil. A cada partida entram em campo não só dois times, mas a virtù e a fortuna. Um gol - ou uma defesa - geralmente é uma vitória da virtù sobre a fortuna.
Muitos viram a goleada da Alemanha na seleção como uma vitória da técnica sobre a intuição, ou seja, da virtù sobre a fortuna. Discordo desse exercício de amesquinhamento do Brasil. Do esporte que foi bretão, nunca se exclui a fortuna. Os seis minutos cruciais em que se apagou a nossa estrela (lembro que a fortuna é da família da astrologia) poderiam não ter ocorrido daquele jeito. Cada vez que um gol é anulado, ele não se repete. É claro que devemos investir mais na virtù, aprimorar pontos falhos. Mas um jogo de futebol é sempre uma encenação do drama principal do poder, em que a ação deliberada do homem confronta o acaso da grama, do ar, do clima. Um campeonato de futebol é um drama do poder. Hoje, quando cada um de nós se sente livre - e inseguro - como o príncipe de Maquiavel para lidar com o mundo, sem mais o amparo dos velhos referentes, uma partida serve de metáfora da vida, de continuação desse combate que o homem trava para governar o destino, esse drama de Sísifo, que nunca vencemos de todo, que no final sempre perdemos, mas que é imperioso travar.
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Renato Janine Ribeiro é professor de Ética e Filosofia na USP e autor de A universidade e a vida atual (Companhia das Letras)
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