Voltaire mescla ironia e pensamento crítico em 'Dicionário Filosófico'

Obra enciclopédica do filósofo francês volta às prateleiras em nova tradução

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Por Elias Thomé Saliba

Na célebre caracterização de Italo Calvino, é a velocidade, a leveza e a mobilidade saltitante do estilo de Voltaire que ainda continuam a fascinar os leitores de todos os tempos. É possível conferir isto na nova publicação completa do Dicionário Filosófico (WMF Martins Fontes). Reunindo traduções altamente qualificadas, incluindo as citações em latim e italiano e a apresentação da professora Maria das Graças de Souza, da USP, a edição brasileira foi feita com base na edição francesa de 1878 e agrupa num só volume, todas as publicações menores, chamadas de portáteis, que o filósofo fez ainda em vida do Dicionário, com os muitos acréscimos e modificações. 

Gravura do século 19 retrata o filósofo francês Francois Marie Arouet de Voltaire (1695-1778) Foto: Prix Voltaire International

Nada a estranhar na grandeza de detalhes dos inúmeros verbetes, pois o dicionário correspondia ao gosto compulsivo da época das Luzes e da Enciclopédia por reunir em ordem alfabética todo o saber do mundo civilizado. O Dicionário de Voltaire se diferencia, contudo, pela sua verve, estilo corrosivo e, sobretudo, pelos inúmeros recursos cômicos. “Com Voltaire, a pena voa e ri”, definiu Victor Hugo. Neste aspecto, Voltaire seguramente foi o inaugurador da moda dos inumeráveis dicionários burlescos, satíricos e paródicos, os quais, apesar de não respeitarem nenhuma ordem lexicográfica, irão inundar o mercado de livros no século seguinte.  Claro que nem todos seguiam à risca a sequência alfabética e nem o tamanho das entradas do dicionário de Voltaire, sobretudo em verbetes mais extensos, descompensados, crivados de diálogos ficcionais, dedicados aos temas mais obsessivos do filósofo: a crítica ao fanatismo e às religiões. Apesar das primeiras edições sofrerem censuras severas e proibições que, não raro, levaram à condenação por heresia ou sacrilégio, inúmeros leitores já se deliciavam, na época, com a leitura dos dicionários portáteis de Voltaire: “A obra passa de mãos em mãos sem causar estrondo ou escândalo, as pessoas leem, sentem enorme prazer com a leitura, mas... sempre fazem o sinal da cruz para impedir que o prazer seja demasiado grande”, testemunhou D’Alembert. Testemunho que reitera que os filósofos iluministas não foram nada originais em termos filosóficos, mas conseguiram estender seu amplo domínio aos meios de comunicação da época.  Certamente, o leitor de hoje talvez prefira as versões portáteis do dicionário a ter de enfrentar 1.512 páginas, mas, pode consolar-se com o conselho de um de meus avôs quando garantia que não devemos ter preconceito em relação aos livros grossos porque, afinal, “são os únicos que param de pé na estante.”  Voltaire pratica como ninguém a técnica de introduzir o inesperado naquilo que é habitual, subvertendo a lógica rotineira e o próprio andamento do texto, recolocando as metáforas naquele certeiro lugar da surpresa, não destituída de certo lirismo: “As religiões são como os vagalumes, brilham apenas na escuridão”. Já no magistral e atualíssimo verbete que trata do “abuso das palavras”, vaticina, com sua lógica implacável: “Em todas as discussões sobre a liberdade, um argumentador quase sempre entende uma coisa e seu adversário, outra. Chega um terceiro que não entende nem o primeiro nem o segundo, e não é entendido por eles. Nas discussões sobre a liberdade, um tem na cabeça o poder de agir; o outro, no poder de querer; o último, o desejo de executar; os três ficam correndo, cada um em seu círculo, e nunca se encontram.”  Herdeiro da cultura seiscentista, que prescrevia sempre, e em quaisquer situações, manter a decência e o recato, o humor de Voltaire, entretanto, contraria frontalmente o escárnio, o riso maldoso ou a alegria pela humilhação alheia. Na época de Voltaire a “schadenfreude” alemã (“prazer com o dano alheio”) ainda era inusual, mas ele fala em “joie méchamée” (“alegria perversa”) como aquele riso macabro ou hipócrita – antevendo que todos sentimos prazer com os tombos dos outros, mas quando nos pedem para nomear tal prazer recalcado, nossa linguagem recai num silencio hipócrita. Educado em colégio de jesuítas, Voltaire alavancou sua enorme erudição indo buscar informações e fazer pesquisas junto aos religiosos de Senones e, posteriormente, brincou com isto: “Ide sempre à casa de vossos inimigos para vos abastecerdes de artiharia”. Por outro lado, alguns verbetes ainda surpreendem ao repercutirem bastante alguns imbróglios da atualidade.  Sua condenação ao racismo é difusa – e não tão explícita quanto a fala do escravo negro na famosa passagem do capitulo 19 do Cândido – mas reponta em vários verbetes, aparecendo como uma espécie de desdobramento de sua crítica radical ao fanatismo religioso. “Raça” não chega sequer a ser uma categoria fundamental na obra, mesmo nos extensos verbetes nos quais percebe-se uma extremada exotização de turcos, chineses ou sarracenos. A Europa teria que esperar por gente como o Conde de Gobineau ou Hitler para elevar o racismo a uma filosofia sistemática e à subsequente prática genocida do ódio étnico.  O filósofo das Luzes tinha problemas com o céu mas era a terra que ele queria verdadeiramente transformar num lugar ideal; por isto, deixava em seu devido lugar aquela tradicional imagem do príncipe como déspota esclarecido mas, fornecia-lhe outra moldura, mais dessacralizada, mais moderna e mais humana. Em resumo, a situação intelectual de Voltaire era muito parecida com a que vivemos hoje, entre a horizonte da esperança e o abismo do medo, pois ele tinha um pé num mundo em desaparição e outro pé num mundo que estava nascendo – ignorando completamente como sería este último. Valia então apostar na ciência, na cultura e na civilidade – ainda quando estas eram duramente ameaçadas em suas bases: “Almas imundas, fanáticos absurdos, todos os dias indispõem os poderosos e os ignorantes contra a cultura(...) É muito perigoso ter razão nos assuntos em que as autoridades estão completamente equivocadas”, fulminou Voltaire nos verbetes sobre a tirania. E hoje talvez prestemos pouca atenção neste filósofo que falava em nome da humanidade, já que esta, segundo a ironia de Ortega y Gasset, tornou-se, como as estatísticas, “apenas o nome abstrato de uma situação que dura, aproximadamente, um bilhão de anos.” Este enorme dicionário nos mostra que, apesar daquela obscura atmosfera de transição e de resignação, Voltaire manteve incólume sua crença na humanidade, na ciência acima das superstições, na ética acima das religiões e, sobretudo, na vida civilizada. E, convenhamos, algumas pitadas do mais autentico humanismo nunca serão demasiado inúteis neste nosso mundo de pandemias, de retóricas tortuosas e de completa indiferença pela vida. *ELIAS THOMÉ SALIBA É HISTORIADOR, PROFESSOR TITULAR DA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE ‘RAÍZES DO RISO'

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