Volume reúne os principais contos de Flannery O'Connor

'Um Homem Bom é Difícil de Encontrar e Outras Histórias' é uma porta de entrada para a prosa sombria da autora

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Por Paulo Nogueira

Um Homem Bom É Difícil de Encontrar deve ajudar a tornar a magnífica obra de Flannery O’Connor mais conhecida no Brasil, onde, salvo erro, tem sido incompreensivelmente negligenciada. A autora escreveu dois romances, mas a especialidade da casa eram os contos – e longos, por vezes com mais de 30 páginas. O crítico Harold Bloom considera O’Connor a melhor contadora de histórias da literatura americana desde Hemingway. Pessoalmente, não sei se até não rolaria um empate técnico. 

Autorretrato pintado pela escritoraFlannery O'Connor 

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Como nada é perfeito, a capa desta edição da Nova Fronteira é, para usar um misericordioso eufemismo, medonha. Mas talvez venha a calhar, já que O’Connor era uma virtuose do grotesco, que convertia em arabesco visceral. “Grotesco” vem de “grotto”, gruta ou caverna, com todos aqueles meandros soturnos. Natural da Georgia, uma espécie de Rondônia americana, a escritora é um dos expoentes do “gótico sulista”, que combina sofisticação formal com uma visão patibular da decadência, jamais reduzida a um mero teorema sociológico. 

Desenrolando-se em comunidades caipiras e letárgicas, as histórias de O’Connor vira e mexe são protagonizadas por crianças, deficientes, párias e profetas abilolados, que tentam se manter à tona em meio à solidão e ao mal generalizados – e eles próprios não são flor que se cheire. É o “Sul profundo”, já meio que fora do tempo desde a Guerra da Secessão e que, por meio do requinte estilístico e do mal-estar metafísico, acaba abarcando toda um naipe de ficcionistas americanos, alguns deles nem sequer sulistas: Faulkner, Carson McCullers, John Hawkes, John Cheever, Paul Bowles e Truman Capote, entre tantos outros. De modo característico, a ficção de O’Connor ao mesmo tempo desmascara e reverencia as tradições do Sul dos EUA. 

Um Homem Bom É Difícil de Encontrar, de 1953, é o conto mais famoso dela, e emblemático de várias maneiras – inclusive no título sardônico, meio que casamenteiro (só que não, nem que a vaca tussa). É o relato de uma avó que leva o clã a uma demanda destrambelhada. Com sua arrogância ardilosa, a anciã faz com que todos acabem ceifados pelo Desajustado, um assassino demoníaco, que profere uma das frases mais célebres da literatura americana, a respeito da idosa que acabou de matar: “Seria até uma boa mulher, se a cada instante da sua vida houvesse alguém por perto para lhe dar um tiro.”

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O conto tem sido mais debatido do que a primazia do ovo ou da galinha. Uma das exegeses é sobre o que significa ser bom – e o valor da bondade quando ela é meramente passageira. Ou seja: se os seres humanos podem emitir clarões fulgurantes e intermitentes de abnegação e generosidade, por que voltamos tão rapidinho aos nossos eus limitados e mesquinhos? Nos parágrafos de O’Connor, circulamos num pântano em que a percepção distorcida do bem poderá justificar o mal, dada a fronteira tênue entre convicções inabaláveis e ambivalências disfarçadas de boas intenções. Se desejarem exemplos contemporâneos, basta um pulinho nas redes sociais.

Não, Flannery O’Connor não é para estômagos de cristal – um tiquinho de gente devorado pelo lúpus, que a matou aos 39 anos, esta mulher era de uma ferocidade cósmica. Católica fervorosa, mas de uma fé customizada, não faz proselitismo nem passa sermão: apenas distribui bofetadas equitativas, a santos e pecadores, a inocentes e culpados – em geral, os dois lados da mesmíssima moeda (aliás, falsa). Dostoievski não está longe daqui, com sua divisa: “Se cada um recebesse o que merece, quem escaparia do chicote?”

Flaubert entregou o ouro: não se escreve uma boa história com bons sentimentos – e O’Connor o seguiu à risca. Cumpre o supremo mandamento da ficção: mostre, não conte (em inglês: “show, don’t tell”). Jamais cola códigos de barras unidimensionais nas testas dos personagens – apresenta-os interagindo e atritando, fricção gerando ficção, vórtices ontológicos que só se detêm no ponto final, e o leitor que se vire. 

Os meus contos prediletos são O Negro Artificial e O Refugiado de Guerra. No primeiro, um avô e seu netinho, que “nunca viu um negro”, viajam de trem a Atlanta, naquilo que seria um rito de passagem, um salto cognitivo. Como se trata de O’Connor, a informação impressionista serve para perpetuar a ignorância e o preconceito. Mas há também um significado mais vasto: a sucessão inexorável e competitiva de gerações, uma empurrando a outra para a morte e o oblívio, enquanto espera sua vez de ser descartada. A propósito, tema também de Visão da Mata, conto não incluído nesta antologia, que Harold Bloom considera o melhor da autora, e em que um avô e sua neta se estapeiam até à morte.

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Em O Refugiado de Guerra, uma viúva contrata um polonês para trabalhar em sua fazenda, na qual vagueiam deslumbrantes pavões (O’Connor viveu seus últimos anos num sítio com dezenas destas aves, e até escreveu um ensaio sobre elas: The King of Birds). O refugiado, cuja língua ninguém nem tenta falar, acaba suscitando a hostilidade de todos (brancos e negros, patrões e empregados), por não saber traduzir aquele ambiente tacanho e volátil. Até que cai a bomba, dos lábios da supostamente pia fazendeira: “Cristo para mim não passa de um refugiado de guerra!” O que não será propriamente um elogio, nem para o Salvador, nem para o recém-chegado, imolado com a conivência de quase todos. 

Toda a obra de O’Connor pode talvez ser etiquetada com o título de um destes contos: A Gente Boa da Roça. Desde que percebamos o sarcasmo e entendamos a roça como o cosmos – e que todos somos roceiros. Mais ou menos como disse Guimarães Rosa, outro capiau universal: “O sertão é o mundo.”

*Paulo Nogueira é autor de 'O Amor é um Lugar Comum' (Intermeios)

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