A grande pergunta que incomoda atualmente o mundo literário americano é se William Faulkner, o criador de romances memoráveis do século 20 como O Som e Fúria (1929), Luz em Agosto (1932) e Absalão! Absalão! (1938), era um racista silencioso.
Nesses tempos de pandemia, que acentuaram mais do que nunca os traumas de gênero e de etnia nos Estados Unidos – marcados por uma Guerra Civil que pôs irmão a lutar contra irmão, ocorrida entre 1860 e 1864 –, um escritor como Faulkner, sulista (portanto, do lado derrotado e escravocrata que intensificou o ressentimento pelos negros na sociedade americana) e dono de uma obra complexa que é comparável à de Herman Melville, é um prato cheio para quem quiser cavoucar essas feridas da alma de um país.
Duas biografias lançadas recentemente tentam responder a essa questão. A primeira é composta de dois volumes (The Life of William Faulkner, com mil páginas cada um), escrita por Carl Rollyson (especialista no gênero e que já fez relatos da vida de Sylvia Plath e Susan Sontag). Ela supera os primorosos trabalhos feitos anteriormente por Joseph Blotner, Frederick R. Karl, Jay Parini e Michael Millgate, não apenas por causa da pesquisa meticulosa (sabemos até quais eram as estripulias sexuais de Faulkner com suas amantes), mas sobretudo pela compreensão carinhosa que ele tem do personagem escolhido.
A segunda é o ensaio biográfico de Michael Gorra, The Saddest Words – William Faulkner´s Civil War, cujo mote é tentar vislumbrar se a obra do autor de Palmeiras Selvagens entendeu ou não essa grande cicatriz que foi a escravidão americana – e suas repercussões após a Secessão entre o Norte e o Sul dos EUA (com a vitória do primeiro sobre o segundo). A resposta de Gorra é positiva, mas não da maneira como alguns podem esperar.
Para Gorra, a importância literária e moral de Faulkner está no fato de como ele lida com o trauma que foram esses eventos históricos. Como disse uma vez Noah Polk, outro estudioso na obra do escritor americano, em uma entrevista que fiz com ele em 2011, Faulkner “era um escritor obcecado com a perda e o seu interesse em relação à passagem do tempo surge como consequência disso. Seus personagens sempre estão olhando para trás, sempre tentam recuperar algum momento edênico que perderam – seja um lugar, um amor ou uma experiência que os definiu e que jamais recuperarão”.
Gorra concorda com tudo isso, mas acrescenta outro prisma para reflexão: a capacidade de dominarmos o nosso passado atribulado por meio do presente. Inspirado pelas meditações sobre a culpa nazista feitas por Hannah Arendt, Eric Voegelin e Karl Jaspers, ele consegue superar a sua própria “ingenuidade Yankee” (a favor de Lincoln e da União) para perceber que Faulkner moldou, com seus livros, um conjunto de Stolpersteine, “pedras de tropeço” em alemão – ou de escândalo, o skândalon grego relembrado pelos Evangelhos cristãos –, que nos remete a uma memória a qual não pode ser completamente redimida em uma “sociedade fechada” onde o maligno se perpetua na psique de cada indivíduo que mora nela.
Isso o leva à conclusão parcial de que Faulkner não foi um racista consentido, apesar de algumas declarações polêmicas suas na época da luta pelos direitos civis; mas também não o absolve por completo, pois, de acordo com sua perspectiva, ele poderia ter “feito mais” pelo movimento. Todavia, eis uma leitura míope da própria obra analisada no livro de Gorra. Quem ler qualquer linha de O Som e a Fúria (em especial a parte sobre a escrava Dilsey), Luz em Agosto (no qual o mestiço Joe Christmas é o Cristo recrucificado), Absalão! Absalão! (em que, para a família Sutpen, a miscigenação é pior do que o incesto), The Unvanquished (1939) e Go Down, Moses (1942) (ambos sobre a Reconstrução ocorrida após a derrota do Sul) sabe que o preconceito retratado em seus livros não é algo meramente estrutural – e sim algo especificamente sinistro e macabro. Trata-se de um racismo cuja essência é nada mais, nada menos que satânica.
Antes de qualquer intelectual defensor do Black Lives Matter, foi o branco e sulista William Faulkner que compreendeu de fato que o racismo foi a principal razão para a aniquilação da comunidade onde o ser humano poderia frutificar as suas verdadeiras potencialidades. Usando a sua imaginação moral para criar o condado fictício de Yoknapatawpha (“terra devastada”, de acordo com o dialeto indígena criado por Faulkner), ele mostra que, com o passar do tempo, a polis ateniense se metamorfoseou em um corpo místico de uma igreja invisível, que sempre existiu fora de qualquer instituição religiosa, e depois foi reabsorvido pela força revolucionária do Estado moderno (a União de Abraham Lincoln). Este processo sufocou o indivíduo como se ele fosse uma abstração; consequentemente, a única coisa que se viu nele foram os conceitos de gênero e de raça, perfeitos para subjugar a única coisa que importa nos nossos tempos: a força indomável da consciência individual – ou o que Faulkner chamava de “o coração humano em luta consigo mesmo”.
O racismo satânico se encontra na simbiose entre raça e estado, na qual um depende do outro para fortalecer a coerção sobre os cidadãos; logo, o ser humano não importa mais como alguém de carne, osso e espírito – e sim como mero instrumento de poder. Com isso, as afeições que antes ligavam os membros de uma comunidade ainda não engolfada pela máquina estatal foram dissolvidas de tal maneira que qualquer manifestação de um amor sincero e virtuoso – e dirigido a uma pessoa singular – foi abolido nas nossas relações. Daí para um massacre, seja de coronavírus, seja de linchamentos morais ou físicos, como ocorreu há um ano nos EUA com George Floyd, é apenas um passo.
Faulkner também entendeu, muito antes dos quatro jovens besouros de Liverpool, que “amor é tudo o que precisamos”. Por isso, a biografia monumental de Carl Rollyson retrata um escritor que odiava ser visto como alguém intelectualizado, apesar da inegável sofisticação literária de todos os seus livros. Nesta aparente contradição, esboçada em algumas linhas do livro de Michael Gorra, encontra-se a solução prática que o próprio Faulkner encontrou para conviver com os membros prejudicados da pequena cidade onde morava no estado de Mississippi, Oxford: o afeto pelo próximo que, seja negro ou branco, sempre deve ser visto como um irmão.
Rollyson relata que Faulkner realizou isso com duas pessoas negras com quem ele convivia. A primeira foi o jovem Ernie McEwen Jr., cujos estudos universitários foram pagos pelo vencedor do Nobel de Literatura; Ernie queria recusar a oferta porque não tinha recursos para recompensá-lo pela dívida, mas Faulkner contra-argumentou: “Não espero que você me pague de volta. Tudo o que peço é que, quando você puder, faça por alguém o que fiz por sua causa”. Ernie cumpriu o acordo: quando fez carreira em engenharia, além de investir na trajetória das suas filhas (formadas em educação e trabalho social), também pagou os cursos de outros rapazes negros igualmente necessitados.
A segunda pessoa foi Earl Wortham, o ferreiro que ajudava Faulkner a selar seus cavalos quando o escritor resolvia brincar de equitação nos fundos da sua grande casa, comprada a muito custo, batizada de Rowan Oak. Earl acompanhou o seu patrão desde a juventude, inclusive carregando-o nas costas quando criança, e viu toda a trajetória dele. Quando o criador de O Som e a Fúria faleceu em 1962, de ataque cardíaco, Earl foi o único que conseguiu, perante toda a comunidade que se encontrava no enterro, sintetizar o único sentimento que ali havia por aquele grande artista. Ele disse: “Acho que não é algo normal que um homem ame outro homem, mas a verdade é que eu amei William Faulkner”. Na busca pelo paraíso perdido, devastado pelo mal diabólico de um racismo que perdura até os nossos dias, só este tipo de afeto pode redimir o coração humano que realmente luta consigo mesmo.* Martim Vasques da Cunha é autor de 'A Tirania dos Especialistas" (Civilização Brasileira) e 'O Contágio da Mentira" (Âyiné)
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