A reunião do Vaticano sobre a crise da dívida global na semana passada não foi tão cheia de celebridades quanto a que o Papa João Paulo II presidiu há 25 anos, quando usou óculos escuros dados a ele por Bono, vocalista do U2.
Mas a mensagem que o atual papa, Francisco, transmitiu dessa vez — para uma sala cheia de banqueiros e economistas em vez de estrelas do rock — foi a mesma: os países mais pobres do mundo estão sendo esmagados por dívidas incontroláveis e as nações mais ricas precisam fazer mais para ajudar.
As nações emergentes estão enfrentando uma dívida pública impressionante de US$ 29 trilhões (R$ 157 trilhões). Quinze países estão gastando mais em pagamentos de juros do que em educação, de acordo com um novo relatório da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento; 46 gastam mais em pagamentos de dívidas do que em assistência médica.
Dívidas incontroláveis têm sido uma característica recorrente da economia global moderna, mas a onda atual pode muito bem ser a pior até agora. De modo geral, a dívida do governo em todo o mundo é quatro vezes maior do que era em 2000.
Os gastos excessivos ou a má administração do governo são uma das causas, mas os eventos globais fora do controle da maioria das nações fizeram com que seus problemas de endividamento se agravassem. A pandemia da covid-19 reduziu os lucros das empresas e a renda dos trabalhadores ao mesmo tempo em que os custos com assistência médica e ajuda humanitária aumentavam.
Conflitos violentos na Ucrânia e em outros lugares contribuíram para o aumento dos preços da energia e dos alimentos. Os bancos centrais aumentaram as taxas de juros para combater a inflação crescente. O crescimento global desacelerou.
Ambos os papas associaram seus apelos ao que batizaram de Jubileu ou ano santo — uma celebração com raízes na Bíblia e ligada a um período em que os escravos foram libertos, e as dívidas, perdoadas.
A campanha do Jubileu de 2000 contou com a participação de uma coalizão improvável de líderes religiosos, músicos, acadêmicos, conservadores evangélicos, ativistas liberais e políticos. Mais de 21 milhões de pessoas assinaram petições apoiando o perdão das dívidas. Isso acabou resultando em um esforço global extraordinário que eliminou mais de US$ 100 bilhões (R$ 542 bilhões) em dívidas de 35 nações pobres.
O Papa Francisco reviveu a ideia para o Jubileu de 2025 da Igreja. Nomeado cardeal na Argentina em 2001, no auge do colapso financeiro do país, Francisco viu em primeira mão a miséria e os violentos tumultos que uma crise da dívida poderia causar.
Leia também
Ele pediu uma transformação do sistema financeiro global, além do perdão dos empréstimos. “Vamos pensar em uma nova arquitetura financeira internacional ousada e criativa”, disse ele na semana passada.
Seu discurso foi um reconhecimento de que os problemas de dívida deste século são muito mais complicados do que os do século anterior.
Hoje, a dívida pública mundial não é apenas maior, ela é diferente.
Naquela época, a dívida era mantida em grande parte por um punhado de grandes bancos de países ocidentais e organizações internacionais de desenvolvimento com décadas de existência. Hoje, além desses participantes estabelecidos, os países precisam enfrentar milhares de credores privados e credores oficiais adicionais, como a China, bem como uma variedade de contratos de empréstimo, às vezes secretos, regidos por diferentes regulamentações nacionais.
Muitos economistas e formuladores de políticas estão chegando à conclusão de que os mecanismos e as instituições, inclusive o Fundo Monetário Internacional, que foram criados há 80 anos para lidar com países em dificuldades financeiras, simplesmente não estão mais à altura da tarefa.
É como ter um reparador de televisão que sabe substituir tubos de raios catódicos, mas não placas de circuito.
Indermit Gill, economista-chefe do Banco Mundial, fez uma observação semelhante esta semana, quando o banco divulgou seu último relatório econômico global, que alertou sobre o impacto devastador da dívida em um momento de desaceleração do crescimento.
O alívio da dívida “é a parte mais fraca da arquitetura financeira global”, disse Gill. As mudanças nos empréstimos, acrescentou ele, “exigem uma nova estrutura de reestruturação da dívida que ainda não está em vigor”.
Os crescentes atritos entre a China e os Estados Unidos tornaram mais difícil a resolução de crises de dívida. E não há um árbitro internacional com autoridade sobre todos os credores — o equivalente a um tribunal de falências — para julgar as disputas.
O financiamento de instituições como o FMI também não acompanhou o ritmo de expansão da economia global ou o ônus da dívida.
Martin Guzmán, ex-ministro das finanças da Argentina, que também sofreu o impacto devastador da crise da dívida de seu país natal, esteve na reunião do Vaticano na semana passada. Em sua opinião, a ajuda do FMI às vezes é contraproducente, oferecendo empréstimos de resgate, agora com altas taxas de juros, que acabam aumentando a já pesada dívida de um país.
Ele também se insurgiu contra as taxas extras, ou sobretaxas, que o fundo impõe aos devedores de alto risco em dificuldades, desviando fundos preciosos que poderiam ser usados para fornecer assistência médica e reconstruir uma economia.
Os cinco maiores tomadores de empréstimos — Ucrânia, Egito, Argentina, Equador e Paquistão — pagaram US$ 2 bilhões somente em sobretaxas no ano passado, segundo o Center for Economic and Policy Research. Em média, as sobretaxas acabaram aumentando o custo dos empréstimos para todos os países afetados em quase 50%.
Outras tentativas foram feitas para aliviar o ônus das nações endividadas. Os legisladores de duas capitais financeiras globais, Nova York e Londres, discutiram propostas para melhorar o processo de reestruturação da dívida soberana.
A Legislatura do Estado de Nova York considerou um projeto de lei para proteger as nações devedoras dos credores, geralmente chamados de “fundos abutres”, que compram a dívida a um preço com grande desconto e, em seguida, atrasam os acordos de reestruturação para obter mais dinheiro.
A iniciativa morreu no último fim de semana, quando a legislatura foi encerrada, mas é provável que volte a ser discutida na próxima sessão.
Na Grã-Bretanha, que supervisiona 90% dos contratos de dívida dos países de baixa renda, o Parlamento discutiu medidas como uma lei de 2010 que caducou e que impediria que os credores privados obtivessem um acordo melhor do que os credores públicos quando as dívidas fossem renegociadas com os países mais pobres.
No momento, a perspectiva para as nações endividadas é sombria, dada a lentidão com que suas economias estão crescendo. As nações emergentes não têm dinheiro para pagar por educação, infraestrutura, tecnologia e assistência médica. Aproximadamente 60% dos países de baixa renda estão em situação ou alto risco de endividamento, segundo o FMI.
Ao mesmo tempo, trilhões de dólares adicionais são necessários para proteger essas nações vulneráveis de condições climáticas extremas e permitir que elas cumpram as metas climáticas internacionais.
Após retornar da conferência no Vaticano, Joseph Stiglitz, ex-economista-chefe do Banco Mundial, disse que, durante a campanha da dívida do Jubileu de 2000, “havia um otimismo de que havíamos aprendido as lições” e que o programa de perdão da dívida “resolveria o problema daqui para frente”.
“Obviamente, isso não aconteceu”, disse ele. “O problema ficou muito, muito pior do que poderíamos ter imaginado há 25 anos.”
Este conteúdo foi traduzido com o auxílio de ferramentas de Inteligência Artificial e revisado por nossa equipe editorial. Saiba mais em nossa Política de IA.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.