Apenas em 1930-31, em virtude da Grande Depressão, tivemos dois anos seguidos de queda no PIB, acumulando 5,33% para baixo. Se o crescimento no restante de 2016 se mantiver em zero, o que será um grande progresso, o PIB de 2016 registrará uma queda de 2,48% (é o tal “carregamento estatístico”) e o biênio 2015-16 registrará uma queda acumulada de 6,23%.
Bem, com o que hoje sabemos sobre o Petrolão, e com suas ramificações e pestilências brotando tanto das páginas econômicas quanto do noticiário político-policial, é claro que estamos sendo enganados há muito mais tempo.
A derrocada que hoje vivemos começou em algum momento em torno de 2007-2008 quando a administração petista começa a encerrar um período de timidez, quando aceitou herdar a política macroeconômica anterior, apesar de mentir aos quatro ventos que era uma “herança maldita”.
Os primeiros anos do petismo poderiam ter Forrest Gump como patrono. A demografia estava extraordinariamente favorável, assim como as condições externas, e junto a isso, entre 2003 e 2013 o crédito bancário dobra relativamente ao PIB (de 23,6% a 55% do PIB), quase que exclusivamente em razão do crédito pessoal. O endividamento familiar mais que dobra (de 20% para 46% da renda) sem maiores elevações no comprometimento de renda, em razão do advento do crédito consignado.
Esse combustível se mostra extremamente poderoso numa economia onde o envelhecimento da população produzia o fenômeno conhecido como a “ascensão da classe C”. Exemplo simples: famílias de 7 membros – casal que trabalha, mais cinco filhos em idade escolar –, era Classe D ou E pela Pnad no início dos anos 1990. Quinze anos depois, são 7 de 7 trabalhando mais o avô que foi morar com a família, e é quem toma o crédito consignado por conta de aposentadoria pelo INSS, com o qual limpa os carnês da família, alongando suas dívidas. Esta é a classe C: 8 de 8 da família tem renda, nenhuma das meninas engravidou e todos moram e se endividam juntos.
O principal motor dessa transformação, que envolve redução da desigualdade, é a demografia, como tem se observado em vários lugares do mundo. Não se trata de programas sociais, nem de vontade política de ninguém.
O fato é que essa “idade de ouro” do consumo que se encerra em 2008 deu a impressão ao governo que eles haviam descoberto a pólvora. Esta soberba, combinada com a descoberta do pré-sal, assinalou a passagem da administração petista para uma segunda fase que poderíamos designar como de petismo desinibido, que vai nos conduzir à derrocada hoje muito claramente estabelecida.
O pré-sal foi a faísca final, pois foi entendido como um presente da natureza que nos transformaria numa grande Venezuela, onde os “royalties” podiam lubrificar um clientelismo político inaudito, inaugurando uma dinastia, e ademais parecia se materializar um mito fundador da nacionalidade, o de que a nossa natureza exuberante ia nos fazer ricos sem nenhum esforço.
A liderança política parece se embriagar nesse momento, e tudo se passa como se dois desafios fossem lançados. O primeiro, no lado da macroeconomia, era confrontar o “tripé”, tido como filho do Consenso de Washington, através da Nova Matriz. Vieram as “políticas anticíclicas” e outras esquisitices que foram ficando cada vez piores, especialmente no plano fiscal.
O segundo era o de confrontar a agenda de “ambiente de negócios”, também originária de Washington (esta Banco Mundial), e iniciar um novo modelo de relacionamento entre o público e o privado que, em retrospecto, pode ser descrito como o “capitalismo de capangas” (“crony capitalism”, em inglês) já amplamente estudado em outros países, notadamente entre os Brics. Nada de competição e mercados, mas de acordos e conchavos, políticas seletivas e definição de campeões e empresas amigas do poder.
Tínhamos aí, portanto, um ataque macro e outro micro aos pressupostos internacionalmente aceitos da boa política econômica. O governo adota esse novo receituário talvez pela crença, nada impopular em 2008, que o capitalismo estava acabado, ou que deveríamos buscar um modelo alternativo, meio chinês, meio chavista, sem falar nas razões obscuras para estas opções.
O desempenho econômico do País, de lá para cá, é uma tragédia, macro e micro. Vale o registro que a desarrumação macro não se traduz na volta da hiperinflação porque instituições e defesas foram criadas a partir de 1994 para que a doença não retornasse. Entretanto, a Nova Matriz resultou em uma crise de hiperendividamento público, cuja solução vai requerer bastante criatividade das melhores cabeças da economia brasileira nos próximos anos.
A desarrumação micro teve uma consequência explosiva, adicional à estagnação da produtividade: a corrupção em larga escala. O capitalismo companheiro se irradia a partir de alguns focos principais, e passa a enfrentar a resistência das instituições próprias da democracia de mercado que somos. O primeiro confronto foi no Mensalão, o segundo, bem mais sério, no Petrolão.
Tenha-se claro: a corrupção é tanto maior quanto menor é o papel dos mercados, maior a arbitrariedade decisória do agente público e menor é a transparência. As condições para o avanço da doença se multiplicam com as novas posturas “cronistas” do governo, e não há acidente algum em que a Petrobrás tenha sido maior teatro de operações desse enredo.
A Petrobrás, pasmem, está perto da insolvência. Quem poderia imaginar? Em face das obrigações da legislação americana a empresa registrou em seu balanço de 2014, R$ 6,2 bilhões em pagamento de propina ao longo do período 2004-2014. Corrupção auditada, prova firme, e Dilma Rousseff foi presidente do Conselho de Administração de 2003 a 2011.
As ações disparadas contra a adoção do “capitalismo companheiro”, destacadamente a operação “Lava Jato”, são de importância essencial para afastar do País esta forma pervertida de relacionamento entre o público e o privado que o petismo quis implantar no país. Será fundamental que as investigações prossigam até onde a vilania se estender e também que as instituições se fortaleçam para prevenir a reincidência dessas práticas. Nesse sentido, são importantes as dez medidas propostas pelo Ministério Público, cujo foco é o processo penal, mas também e principalmente o retorno das pautas reformistas no terreno microeconômico com o intuito de melhorar o ambiente de negócios e fortalecer a economia de mercado.
Impessoalidade, concorrência, transparência e meritocracia são valores essenciais de uma economia de mercado sadia que queremos e podemos ser. Trata-se aqui de uma pauta de crescimento limpo, e a limpeza aqui não é apenas no tocante ao meio ambiente.
*Gustavo H. B. Franco é ex-presidente do Banco Central e sócio da Rio Bravo Investimentos. Escreve no último domingo do mês
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