O acordo entre Mercosul e União Europeia, aguardado por mais de duas décadas, configura-se como um marco no comércio internacional contemporâneo. Após 25 anos de negociações, recheadas de avanços e retrocessos, sua assinatura representa não apenas um triunfo diplomático, mas também um simbolismo poderoso em um cenário global marcado por tensões protecionistas e incertezas econômicas. Embora ainda haja um longo caminho a ser percorrido até sua implementação efetiva, o acordo abre portas para oportunidades consideráveis, que podem beneficiar ambos os blocos em diferentes dimensões.
Desde 1999, as negociações enfrentaram inúmeros obstáculos, muitos dos quais ligados às pressões políticas internas de ambos os lados. Na Europa, países como França, Polônia e Irlanda, cujos setores agrícolas possuem influência política desproporcional, sempre dificultaram avanços significativos. No Mercosul, a resistência vinha de entidades empresariais preocupadas com os impactos da competição europeia sobre setores mais vulneráveis, como laticínios e vinhos.
Nos últimos anos, entretanto, uma conjunção de fatores contribuiu para destravar as negociações. O apoio crescente de federações industriais, como a CNI e a Fiesp, e uma estratégia europeia mais proativa para diversificar mercados ajudaram a negociação a ganhar tração. Todos os governos brasileiros apoiaram a continuidade das negociações, incluindo o Lula II, que a relançou em 2010. Em 2019, a perspectiva de um desfecho parecia próxima, mas mudanças políticas na Europa e disputas internas adiaram novamente sua conclusão. Agora, em meio a uma conjuntura global desafiadora, o acordo finalmente encontra um campo para prosperar.
Um dos catalisadores para o avanço do acordo foi o aumento do protecionismo global, intensificado pelas políticas comerciais do governo de Donald Trump, que ameaçam ser agravadas adiante. Diante das tensões geopolíticas e da crescente rivalidade com a China, a União Europeia reconheceu a importância de diversificar suas parcerias comerciais e ampliar sua presença em mercados estratégicos. Líderes como Ursula von der Leyen pressionaram pela conclusão do acordo, buscando reafirmar o compromisso europeu com a liberalização comercial em um cenário de fragmentação das regras multilaterais.
Para o Mercosul, o cenário também mudou. O crescimento do mercado consumidor regional, com quase 300 milhões de habitantes, e o interesse europeu em commodities de alta qualidade e minerais críticos aumentaram o apelo do bloco sul-americano. Países como o Uruguai, ansiosos por implementar os benefícios comerciais, lideraram esforços para alinhar posições internas. Além disso, o discurso de Javier Milei, com uma retórica pró-livre comércio, contribuiu para reduzir resistências no Mercosul.
O acordo traz benefícios claros para ambos os blocos. Para o Mercosul, o acesso a um mercado premium como o europeu representa uma oportunidade de ouro. Produtos agrícolas, como carnes, frutas e café, poderão conquistar maior participação em mercados exigentes, ainda que sob o limite de quotas. O reconhecimento de produtos de alta qualidade e preços mais competitivos aumenta a atratividade das exportações sul-americanas.
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Para a União Europeia, o acordo consolida o bloco como parceiro preferencial para investimentos no Mercosul. Empresas europeias terão maior acesso a compras governamentais e setores estratégicos, como infraestrutura e energia, enquanto ampliam exportações de bens manufaturados e serviços. Esse fluxo de investimentos pode modernizar a indústria local, promovendo maior integração econômica.
Além das vantagens econômicas, há ganhos institucionais. O acordo estabelece regras claras para propriedade intelectual, investimentos e cooperação ambiental, oferecendo previsibilidade e segurança jurídica para investidores. Ele também fortalece a posição de ambos os blocos como defensores do sistema multilateral baseado em regras, em um momento de retração global do comércio.
Apesar dos avanços, o caminho para implementação enfrenta desafios consideráveis. Na Europa, o lobby agrícola continua a ser um obstáculo formidável. Setores agrícolas na França e Irlanda resistem à ideia de competir com produtos do Mercosul, muitas vezes apelando para discursos que misturam nostalgia rural e protecionismo disfarçado de preocupações ambientais. No Mercosul, a preocupação reside na concorrência com bens manufaturados europeus, exigindo esforços para modernizar a indústria local e torná-la mais competitiva.
Embora a assinatura do acordo represente um passo histórico, sua implementação será lenta e complexa. O texto precisa passar por revisão jurídica, tradução e aprovação nos congressos nacionais dos países do Mercosul, além do Parlamento Europeu e da Comissão Europeia. Estima-se que esse processo leve cerca de quatro anos, com base na experiência de acordos anteriores, como os firmados com Israel e Egito. Um aspecto inovador do acordo é a possibilidade de implementação individual pelos membros do Mercosul que o ratificarem primeiro. O Uruguai, por exemplo, já se posicionou para aproveitar essa vantagem, o que pode gerar dinâmicas internas interessantes dentro do bloco.
O acordo entre Mercosul e União Europeia é mais do que um pacto comercial; ele representa uma oportunidade histórica de integração econômica e cooperação institucional entre dois blocos com grande potencial econômico. No entanto, seu sucesso dependerá da capacidade de ambos os lados de superar resistências internas e alinhar interesses em um momento de desafios globais crescentes.
Se implementado com eficácia, o acordo pode transformar as relações comerciais e garantir que o Atlântico, em tempos de crescente relevância do Pacífico, mantenha um papel significativo no comércio internacional das próximas décadas. A chave para esse sucesso será a habilidade dos dois blocos de navegar as águas turbulentas do protecionismo e das disputas políticas, para criar uma era de prosperidade compartilhada.
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